Dara, a indígena que trocou os campos de futebol pela medicina e combate a covid em sua aldeia

Dara Ramires Lemes nasceu na aldeia Te’yí kue, em Caaparó (MS), e se formou em medicina na Universidade Federal de Santa Maria (RS) – Fotos: Reprodução

Doutora Dara! É assim que os cerca de 4 mil indígenas que vivem na aldeia Te’yí kue, em Caarapó (MS), a 274 quilômetros de Campo Grande, passaram a chamar Dara Ramires Lemes, uma jovem carismática de 25 anos, que se tornou a primeira guarani-kaiowá a se formar em medicina.

Esforçada e estudiosa, Dara conseguiu realizar o sonho da mãe, a professora Zeni, que desejava vê-la atuando como médica na comunidade indígena, onde vivem pelo menos 400 famílias, que têm justamente o guarani como idioma principal. Mesmo em começo da carreira, a jovem já atua na própria aldeia cuidando de pacientes e orientando em relação aos perigos da COVID-19 em seu local de nascimento.

Antes de ser profissional de saúde, o destino de Dara por pouco não a levou ao futebol profissional e a Minas Gerais. Aprovada num teste para atuar no time feminino do Atlético entre as temporadas de 2012 e 2013, ela surpreendeu pela boa técnica e venceu o Campeonato Mineiro da categoria em pouco mais de um ano.

Aos poucos, no entanto, percebeu as dificuldades que teria para alcançar o sucesso na modalidade, o que se acentuou depois da extinção da equipe para reduzir custos.

Como a carreira nos gramados não deu certo, Dara partiu para o outro sonho. Aos 17 anos, se matriculou em um cursinho pré-vestibular em Dourados (a cerca de 45 quilômetros de Caarapó) e logo tentou medicina, por influência da mãe.

Uma de suas maiores alegrias foi a aprovação no vestibular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, a mais de 1 mil quilômetros de sua terra natal. A distância seria um problema a mais, mas ela já havia tido a experiência de morar em BH, o que ajudou muito na adaptação à nova cidade.

“Sabia que não seria fácil. Mas não me lembro de reclamar muito. Apesar de viver cansada, eu sempre aproveitava os momentos de folga. Quando saí para jogar futebol, eu sabia que mesmo assim precisava seguir estudando”, afirma Dara, que se mostra muito tímida.

A formatura ocorreu no fim do ano passado. Desde então, ela voltou para a Te’yí kue, onde voltou a morar com os pais. Em seguida, passou a atender diariamente as demais famílias da comunidade. À noite e nos fins de semana, ela faz plantão no hospital da cidade.

LINHA DE FRENTE

Uma de suas funções na aldeia é o atendimento primário e na prevenção de casos de coronavírus, principalmente nos protocolos iniciais, como uso de máscara, álcool em gel e distanciamento social, além de mostrar a importância da vacina nos dias atuais.

Como profissional de saúde e indígena, ela recebeu as duas doses do imunizante, assim como seus pais.

“Os pacientes olham para mim e eu me sinto na responsabilidade de fazer o meu melhor frente ao quadro deles. Vê-los satisfeitos com certeza me deixa contente e faz valer a pena todo esforço que eu fiz para chegar até aqui”, diz.

Preocupada com os rumos da pandemia no país, ela faz um sincero apelo às autoridades políticas para que o Brasil não continue sendo dizimado pela doença: “A situação atual é bastante preocupante e precisa ser levada mais a sério, até porque são vidas que estão em risco. As políticas de saúde precisam ser mais agressivas e também paciente com as pessoas. Precisamos entender logo que a atual situação precisa de esforço conjunto de todos. Não conseguiremos controlar essa situação se não nos unirmos”.

Mesmo fazendo parte da linha de frente e atuando num momento triste da história do país, Dara se sente feliz em poder contribuir no que mais gosta. Ao se sentir realizada em se tornar médica, a jovem transmite uma mensagem a todos: “Quero que as pessoas acreditem que sonhos podem se tornar realidade a partir do momento que você se sente capaz, acredita e se dedica para aquilo. Todo esforço tem recompensas. Então, sonhar é o começo de tudo”.

Uma família que ama o futebol

Segundo o fisioterapeuta Marcelo Saliba, o preparo físico de Dara era diferenciado

Dara Ramires jogou futsal e passou pelo Campo Grande antes de tentar a sorte no Atlético. A família toda ama futebol. O pai, Dario, foi jogador nos tempos de juventude. O irmão mais velho, Cleison, atuou na base do Figueirense, mas desistiu da carreira. O caçula, Sander, passou pelo São Paulo e pelo Audax-SP e hoje defende o Loulatano, da Terceira Divisão de Portugal.

A única moça filha do comerciante Dario e da professora Zeni também poderia ter êxito se não fosse o destino. A chance de defender o Atlético surgiu depois de uma seleção feita em BH com mais de 350 postulantes a jogadora de todo o país, em 2012.

“Meu pai e eu fomos a Belo Horizonte de ônibus. Fiz o teste e eles gostaram bastante do meu futebol naquele dia, sendo aprovada. Voltei para casa e no mesmo mês retornei para Minas Gerais para os treinamentos”, conta Dara.

Naquela época, o Galo contava com atletas que futuramente se destacariam em nível mundial, como a lateral-esquerda Tamires e a atacante Amanda Moura, irmã do também atacante Rafael Moura, revelado pelo alvinegro. Nesse contexto, a sul-mato-grossense se arriscou a vir para Belo Horizonte em busca de uma oportunidade.

“De todas as 350 atletas que fizeram testes, só ela passou. Ela era aplicadíssima nos treinos e tinha uma qualidade muito grande. Era forte e explosiva, tinha boa condução de bola em diagonal e marcava muitos gols, além de bater muito bem com os dois pés. Eu a indiquei para a Seleção Brasileira Sub-17, mas ela não foi chamada, infelizmente”, conta o técnico Wellison Bitencourt, responsável pela escolha da então jogadora.

Bitencourt foi muito mais que um treinador para a jovem indígena. Com o aval do pai da atleta, ele assinou um documento em cartório para ser o responsável legal da então adolescente, que dava os primeiros passos no mundo da bola.

“Ela era menor de idade e precisava de alguém para cuidar dela. Eu ajudava na questão da saúde dela, da escola, com obrigação de frequentar reuniões com professores”.

Dara morou na Vila Olímpica, antigo alojamento do futebol feminino, e estudou parte do ensino médio no Colégio Santos Dummont, em Venda Nova. Ela frequentava as aulas pela manhã e à tarde treinava com o grupo alvinegro.

“Sempre gostei de jogar como meia-atacante, mas, durante a vivência no Atlético, o treinador nos exigia versatilidade. Sempre estávamos mudando de posição”, conta Dara.

Fisioterapeuta do time feminino no período, Marcelo Saliba conta que a característica física da jovem era diferenciada, se comparada a outras jogadoras: “Era uma atleta implacável, pois não tinha lesão, era muito forte e dedicada nos treinos. Era muito incisiva em algumas partidas. Era de poucas palavras, mas risonha, uma marca dela”.

A passagem da então jogadora pela capital mineira foi ligeira, mas ficou marcante. “Em BH, eu gostava só dos dias de jogos. Reclamava dos treinos como qualquer outra jogadora, mas sempre os levei a sério”, admite Dara, que é torcedora do Corinthians.

Apesar dos percalços, ela guarda com ótima recordação o período em que foi atleta e diz que a trajetória a ajudou na profissão atual.
“Tive o sonho de vestir o uniforme da Seleção Brasileira, mas Deus sabe de tudo e eu nunca questionei. Fico agradecida só pela oportunidade de viver aquilo. O futebol foi uma parte muito bonita da minha vida. Eu não mudaria nada em minha trajetória. Se não fosse pelo que aprendi no meu passado, não seria o que sou hoje”. (Por Roger Dias, de  O Estado de Minas)

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