Resistência aos aparelhos de surdez aumenta risco de demência
Em seu doutorado, realizado na Universidade de Sheffield e na USP (Universidade de São Paulo), a otorrinolaringologista Milene Bissoli (foto em destaque) dedicou-se a uma área que dá seus primeiros passos: a utilização de células-tronco para curar a surdez. Além de ser especialista no assunto, a questão a mobiliza porque deixar de ouvir é o principal fator de risco para a demência que pode ser prevenido isoladamente.
No entanto, o estigma em relação aos aparelhos para surdez faz com que muitas pessoas adiem ou até descartem seu uso, apesar das evidências que ligam a perda da audição ao declínio cognitivo. O caso é tão sério que o FDA, o equivalente da Anvisa nos EUA, vai liberar a venda de próteses em farmácias, sem receita médica, a partir de outubro – o órgão calcula que apenas um quinto dos 30 milhões de norte-americanos com problemas auditivos consegue ajuda. No Brasil, o SUS oferece tratamento, mas não alcança os cerca de 10 milhões com algum tipo de deficiência. Seguem os principais trechos da nossa conversa:
Envelhecimento e surdez: “a alteração do processamento auditivo central começa por volta dos 40 anos. Ainda não se trata da perda auditiva propriamente dita, mas a capacidade de filtrar o ruído já fica alterada. Não precisamos aumentar o volume da televisão, mas percebemos que não conseguimos acompanhar a conversa num almoço de família ou num bar, por exemplo. Quando se trata de envelhecimento, a cirurgia não é possível; em 99% dos casos, a indicação é de aparelho. A audiometria é um exame simples e não invasivo. Deveria fazer parte do check-up, como os exames de sangue, a mamografia ou a colonoscopia”.
Rejeição às próteses: “o estigma existe, infelizmente, por isso costumo usar uma comparação. Se a gente usa óculos quando tem algum problema de visão, por que não faz o mesmo em relação à audição? Trata-se de recuperar a funcionalidade daquele órgão. E quanto mais precocemente adotarmos o aparelho, melhor. A adaptação a uma prótese evita a perda de qualidade de vida e diminui o risco de demência”.
Risco de demência: “o uso do aparelho faz com que as conexões neurais não se alterem e evita que o processamento de informações seja afetado. Nosso cérebro é feito de conexões e, num quadro de surdez, algumas áreas começam a se conectar menos. Com o tempo, a pessoa passa a ter dificuldades de compreensão e fala. Vamos imaginar alguém cujo processo de surdez se iniciou aos 50 anos e só vai buscar ajuda aos 80. São 30 anos em privação auditiva, o que muda o cenário das conexões neurais – é como se aparecessem lacunas que prejudicam a compreensão e afetam a plasticidade do cérebro, que fica menos ‘afiado’”.
“A surdez é a principal causa modificável de declínio cognitivo na velhice. Essa é uma questão recente até para os médicos, que surgiu nas publicações da última década. Aceitava-se que, se um ouvido ainda estava bom, não era preciso usar aparelho”.
Sobre os dispositivos: “todos preferem o modelo menor, que é mais discreto, mas o que determina o aparelho ideal é a extensão da perda, que tem diferentes graus, indo de leve a profunda.
Também é comum que a audição preserve o reconhecimento dos tons graves e perca o dos agudos e, neste caso, o aparelho menor provoca desconforto e a pessoa pode não se adaptar. A venda no balcão de farmácia, como propõe o FDA, não leva em conta essas especificidades. Aliás, embora o diagnóstico seja feito pelo médico, é fundamental o ajuste fino realizado pelo fonoaudiólogo, para que a prótese fique sob medida para quem usa.
Esse é outro aspecto sobre o qual se fala pouco. O aparelho é um processador que envolve muita tecnologia, a ponto de se selecionar a gradação dependendo do volume de ruído do ambiente. E demanda cuidados: tem que ser limpo, dormir na sílica e não se deve esquecer de trocar a pilha”. (Fonte: G1)