De advogado ao presidente, narrativa machista do caso Neymar reforça estereótipos sobre a mulher
São de homens as principais vozes que têm contado os desdobramentos da acusação de estupro contra o atacante Neymar Júnior na imprensa brasileira. Da primeira declaração pública feita pelo pai do jogador sobre o caso em um programa de televisão até as mais recentes repercussões com autoridades do futebol e figuras públicas, se construiu uma narrativa dominantemente masculina e também cheia de machismos.
Segundo especialistas mulheres, o caso — já marcado por estratégias em que tanto o jogador quanto a moça que o acusa chegam aos limites de suas liberdades individuais ao expor o outro para defender a própria honra — foi levado pelos próprios protagonistas a um “tribunal das redes sociais”. E, independentemente do que apontem as investigações oficiais no futuro, a forma como o caso foi tratado por diferentes setores da sociedade e pelo casal envolvido já vem gerando outras violências e reforçando estereótipos de gênero ainda latentes no Brasil pós-primavera feminista.
Nos últimos dias, o caso concentrou uma enxurrada de declarações públicas, a maioria delas reforçando uma cultura machista na qual a mulher que denuncia uma agressão tende a ter sua credibilidade questionada automaticamente, antes de qualquer investigação.
O primeiro posicionamento oficial sobre a denúncia ficou a cargo do pai do jogador, Neymar Santos, e ocorreu no último sábado, mesmo dia em que a imprensa começou a noticiar a denúncia contra o atacante do PSG. Em entrevista veiculada na televisão, ele disse que o filho teria sido alvo de uma armadilha. Neymar pai negou o estupro e afirmou que a mulher vinha tentando extorquí-lo para não registrar o boletim de ocorrência. Recebeu apoio de José Luiz Datena, jornalista que o entrevistava e que já havia sido acusado de assédio sexual por um colega de trabalho. “É difícil você segurar a meninada dentro de casa”, declarou o jornalista, pouco antes de divulgar ao vivo o nome da mulher que havia denunciado o jogador de futebol. A identidade dela até então havia sido preservada pelas autoridades policiais.
Dois dias depois, declarações do ex-advogado da mulher colocaram mais lenha na fogueira: José Edgar Bueno disse que a primeira versão dela foi de que teria havido agressão durante o sexo e não estupro. O presidente da Confederação Btasileira de Futebol, Rogério Caboclo, também se manifestou sobre o assunto. Com um sorriso no rosto, garantiu que Neymar seria mantido na Copa América após o escândalo e, sorrindo, falou em “manter a naturalidade”, além de evitar que “notícias de fora prejudiquem o ambiente da Granja Comary”.
Na noite desta quarta-feira, foi a vez do presidente Jair Bolsonaro entrar na narrativa. Em uma entrevista que concedeu no interior de Goiás, prestou solidariedade a Neymar pelas acusações e disse acreditar na inocência dele. “É um garoto. Está num momento difícil, mas acredito nele”, afirmou.
“Uma série de profissionais tanto da imprensa quanto do futebol nesse momento se manifestam com um companheirismo [a Neymar] que é perverso”, analisa Amanda Kamanchek, editora da ONG feminista Think Olga. Ela diz que este “reforço dos homens” é comum nas repercussões de casos de violência de gênero. “Independentemente das pessoas saberem o que de fato aconteceu porque só os dois envolvidos estavam naquele momento, já saem em defesa [do acusado] e reforçam o que a gente chama de brodagementre homens”, afirma.
Esses posicionamentos, considera, ressaltam a relação desigual em diferentes esferas de poder, na qual os homens se colocam como superiores. E, independentemente do que possam concluir as investigações da esfera judicial no futuro, podem gerar novas situações de violência contra a mulher que denuncia uma agressão.
“Ela teve o nome divulgado e pode receber ameaças. Também já tem um monte de gente tirando conclusões sobre a imagem dela. É extremamente irresponsável [a cobertura da mídia neste caso], porque cria outras violências a uma vítima que já está fragilizada”, declara Kamanchek.
A exposição do caso tanto na imprensa quanto nas redes sociais respingou também na rotina do filho da mulher que fez a denúncia. A criança teria deixado de frequentar a escola por conta da repercussão do caso, conforme contou o pai dela à imprensa na última terça-feira.
Denúncias como a que agora envolvem Neymar não são raras no futebol, quanto retornam aos holofotes, costumam retomar o debate sobre o machismo em um espaço muito masculinizado. “A opinião toda em torno do caso traz uma imagem geral como se, sempre que houver uma jovem atrás de uma celebridade, ela está disponível e disposta a assumir qualquer consequência. Não é assim. Temos que entender que ninguém está acima da lei”, afirma a advogada Patrícia Peck. Ela diz que a superexposição tanto da mulher que faz a acusação quanto do jogador denunciado pode prejudicá-los no andamento das investigações e de um eventual processo que aconteçam na esfera adequada para isso, que é a Justiça. “Aparecem contradições e há exposição de indícios que deveriam ser apresentados só depois porque causam interpretações prévias, e a opinião pública já vai gerando um juízo de valor”, explica.
A advogada se refere à estratégia usada pelo casal envolvido no caso para defender o próprio ponto de vista. Sob o argumento de provar a sua inocência diante de uma acusação grave como a de estupro, Neymar usou suas redes sociais e expôs a milhões de seguidores as conversas íntimas que trocou com a mulher, incluindo as imagens de corpo que ela havia compartilhado com ele por Whatsapp. O jogador também fez questão de frisar no vídeo que publicou na Internet que ambos haviam trocado mensagens no dia seguinte ao suposto estupro (que ele garante ter sido sexo consensual).
A divulgação desse conteúdo acabou gerando uma nova investigação contra o atacante com base na recente lei 13.718, aprovada no ano passado, que estabelece como crime a divulgação de foto, vídeo de nudez ou cena de sexo sem o consentimento da pessoa. Em contrapartida, a mulher que acusa o jogador anunciou dispor de imagens feitas sem autorização de Neymar que provaria sua versão dos fatos.
“Como a gente vive em uma era de muita exposição, as partes se veem reféns e acham que, se não expuserem todos os dados que possuem, serão condenadas no tribunal da Internet”, diz a advogada Patrícia Peck. Para Amanda Kamanchek, a estratégia da exposição é condenável e pode trazer graves consequências a vítimas de violência de gênero, como depressão, abandono do trabalho e até suicídio. “Acaba colocando os dois, mas principalmente a mulher, em situação de exposição e outras violências. E nisso a questão social e o machismo se manifestam. Essas divulgações massivas tendem a colocar a mulher como objeto e desqualificá-las”, afirma. Nesse contexto, aponta, mesmo a desigualdade entre homens e mulheres em relação à expressão do desejo sexual é colocada em evidência. Ou seja, o próprio fato de a mulher manifestar ter tido vontade de se relacionar sexualmente com o homem é visto como algo negativo. Algo que não acontece com o homem. “Isso é extremamente desumanizador. Independentemente do que se conclua sobre o caso, a narrativa pesa muito mais contra a mulher. Acaba que as narrativas dela e dele não têm o mesmo poder que teriam no tribunal”, diz.
Casos como este põem em evidência como o machismo muitas vezes é reforçado no mundo do futebol. Desde cedo, jogadores são formados sob uma cultura que prega a virilidade como marca de um craque. A psicóloga e coach esportiva Laís Yuri, que trabalha há 11 anos em clubes de futebol, diz que os jogadores estão desde as categorias de base imersos em um ambiente onde tanto é comum os atletas se aproveitarem do status de jogador para começar relacionamentos quanto mulheres que buscam uma atenção social e financeira viabilizada pelo glamour em torno do esporte. Ela diz que há psicólogos nos clubes que tentam trabalhar essa questão tanto com uma orientação individual quanto com palestras. “O clube de futebol é um ambiente extremamente masculino, mas não é o único ambiente machista. Entendendo isso, trabalhamos dentro dos clubes por uma postura nova em relação à mulher, para que ela não seja tratada como objeto”, explica.
( Por Beatriz Jucá, do El País)