Rainha do Congo, dona Nemézia mantém viva a história de Vila Bela da Santíssima Trindade e dos quilombolas
Incansável e com um coração do tamanho do mundo, sempre preocupada com o bem-estar das pessoas que estão à sua volta. Essas são as principais características de dona Nemézia Profeta Ribeiro, 76 anos, nascida e criada em Vila Bela da Santíssima Trindade, primeira capital de Mato Grosso. É casada com Marino Ribeiro, 74 anos, com quem está prestes a completar bodas de ouro. Tiveram três filhos biológicos e criaram outros sete do coração. Tem cinco netos de sangue e outros sete do coração.
Vila Bela da Santíssima Trindade é o berço da história e da cultura negra em Mato Grosso. Na região viveu Teresa de Benguela, líder quilombola que chefiou o Quilombo Quariterê (ou do Piolho) no século 18. Com a morte de seu esposo, José Piolho, Teresa se tornou rainha do quilombo e sob sua liderança, a comunidade negra e indígena resistiu à escravidão por duas décadas, até 1770, quando o quilombo foi destruído pelas forças de Luis Pinto de Souza e a população (cerca de 80 negros e 30 índios) foi morta ou aprisionada. O grande destaque de Teresa foi a forma de governar, com parlamento, deputados, conselheiro e sede para as reuniões.
Descendente de quilombolas, dona Nemézia conduziu sua vida inspirada na história de Teresa de Benguela, sua luta pela preservação da cultura e da diversidade racial. É uma mestre em contar a história da cidade, a resistência dos negros e indígenas daquela época e trabalha pela valorização da cultura, da identidade local e das raças, promovendo o respeito à diversidade.
Devido à distância de Vila Bela dos grandes centros e da precária infraestrutura, dona Nemézia estudou apenas o ensino fundamental. Apesar disso, considera que ela e os nove irmãos são privilegiados, pois puderam ir estudar em Cáceres (a cerca de 300 km) e Cuiabá (a 520 km da cidade), nem que para isso tivesse que ir no “lombo do burro”. Não conseguiu fazer faculdade e começou a vida profissional trabalhando na Câmara de Vereadores, depois fez um concurso do governo do Estado, no qual passou e começou a trabalhar como fiscal do Estado. Em 1980 foi nomeada a primeira mulher “exatora chefe”, na Secretaria de Estado de Fazenda, cargo equivalente hoje à gerente fazendária, função com a qual se aposentou.
Desempenhando o trabalho de mulher, mãe, dona de casa e servidora pública, dona Nemézia ainda tinha disposição para ser promotora da cultura e da arte local. Há 60 anos atua na organização da Festa do Congo e da Festa do Divino Espírito Santo. A primeira é uma manifestação folclórica muito tradicional conhecida em Mato Grosso que resgata a cultura e arte dos negros que viveram na região. Representa a resistência deles após a transferência da capital de Mato Grosso para Cuiabá, em 1835. Faz parte da Festa de São Benedito e sempre ocorre no mês de julho, época das férias escolares, para possibilitar a visitação de escolas de todo o Estado para conhecer esse pedaço da história mato-grossense e brasileira.
Nos dias de festa as pessoas se vestem com as roupas de costume, preparam a comida típica, cantam e dançam. Como exemplo de preservação da cultura na própria família, ela cita a participação de um neto de sete anos na festa. “Ele canta músicas africanas e dança na festa do Congo. Um orgulho para mim que sempre fui defensora da nossa cultura e que não deixo a história cair no esquecimento”. É uma das fundadoras de vários movimentos como a Irmandade de São Benedito, a Irmandade da Santíssima Trindade e a Irmandade da Nossa Senhora Mãe de Deus.
O respeito à diversidade, às diferentes culturas e raças é uma marca ensinada por ela e por muitas pessoas da comunidade às crianças e jovens. Ela conta que na região há muitos descendentes de africanos e chiquitanos (grupo indígena que habita o Oeste do estado de Mato Grosso e leste da Bolívia). O grande envolvimento dela com os movimentos culturais e a festa do Congo lhe renderam a posição de Rainha da Festa do Congo há alguns anos, o que para ela foi a principal recompensa e reconhecimento de todo o trabalho desenvolvido por ela. “Faço isso por amor e para que nossa cultura seja mantida por muitos e muitos anos”.
Outro reconhecimento do seu trabalho e da origem de seu povo ocorreu em 1994, quando o carnavalesco Joãozinho Trinta, escolheu a história de Tersa de Benguela para o enredo da escola de samba para o Carnaval daquele ano. Ela diz que ele esteve na cidade para conhecer a história e ficou muito orgulhosa disso.
Seu grande envolvimento com as manifestações culturais, artísticas e preservação histórica da região fez com que dona Nemézia ficasse conhecida na cidade como uma verdadeira historiadora, testemunha viva da vida dos quilombolas. Frequentemente é procurada pelas escolas locais para contar a história da cidade e a falar sobre diversidade de raças.
Dona Nemézia diz que o trabalho de resgate e valorização da cultura afro-brasileira é “silencioso e de formiguinha”, mas não se cansa e está sempre envolvida com alguma atividade. Agora mesmo, ela planeja montar enxovais de bebês para doar para jovens mães que não têm condição. Para isso, usa recursos próprios e mobiliza a comunidade para ajudar nas doações. Essa preocupação com as crianças vem de longa data. Ela foi uma das fundadoras do Conselho Tutelar da Criança na cidade, em 1994, o que foi conquistado depois de muito engajamento e luta de alguns representantes da cidade junto à promotoria estadual. Com a idade já avançada, dona Nemézia conta que reduziu o ritmo de compromissos. Atualmente cuida apenas da coordenação da Festa do Congo e do Divino Espírito Santo e aceitou recentemente o convite para participar do Conselho da Cooperativa Sicredi Noroeste MT e Acre, e faz questão de participar das reuniões.
(Assessoria Sicredi)