Eles sobreviveram a epidemias e trabalho escravo; agora, a ameaça é o fogo na Amazônia
Um incêndio de seis dias dentro da Terra Indígena Tenharim Marmelos, no sul do Amazonas, ameaça os campos amazônicos da região e os animais que vivem neles — assim como os castanhais que, há gerações, garantem o sustento dos índios tenharim.
Já foram registrados pelo menos dez focos de fogo e brigadas de incêndio formadas pelos próprios índios têm tentado controlar as queimadas, cuja origem ainda é desconhecida.
Os índios relatam que animais que eles costumam caçar para sua subsistência foram calcinados pelas chamas dos últimos dias.“Não se pode dizer se o incêndio é criminoso. Mas uma coisa a gente pode falar. É difícil começar um fogo do nada. De alguma forma aquele fogo foi colocado ali”, disse o cacique Gilvan Tenharim ao BuzzFeed News.
As castanheiras, árvores de grande porte comuns no Norte do Brasil e na Bolívia, são uma das principais fontes de renda dos tenharim.
“Meu bisavô apanhava castanhas aqui, meu avô, meu pai. Não é só o medo de perder o castanhal, mas aqui é o território dos meus antepassados, onde viveram os meus ancestrais”, disse Gilvan Tenharim, 30 anos, o mais novo entre os 12 caciques da etnia.
O cacique apontou para o filho caçula, Ivan Neto, com 2 anos de idade: “Eu ia apanhar castanhas aqui quando era do tamanho dele”.
Sua família e outras da aldeia do Campinho, comandada por ele, retiram por ano 700 latas de castanha, com até 20 quilos cada uma. As castanhas são vendidas para um distribuidor e, junto com a farinha de mandioca e o açaí, garantem a renda local. Cada um dos “ponto de castanha”, que são divididos por grupos de famílias da tribo, tem de 60 a 300 castanheiras.
Escravidão, epidemias e invasão
A história dos tenharim está repleta de episódios sombrios desde que estes índios foram contatados, em 1950, por seringalistas brancos às margens do rio Marmelos.
Segundo relatos reunidos no livro “Os Fuzis e as Flechas – História de sangue e resistência indígena na ditadura” (Companhia das Letras), do jornalista Rubens Valente, os índios se tornaram mão de obra usada por homens brancos na exploração de castanha-do-pará e produção de farinha de mandioca e sorva. O regime a que estavam submetidos os tenharim assemelha-se ao que poderia ser considerado trabalho escravo.
Em 1971, diz a obra, quando as obras da Transamazônica chegaram à região, os tenharim foram removidos e colocados para trabalhar na abertura da estrada que, como parte do Plano de Integração Nacional (PIN) e seu slogan “integrar para não entregar”, rasgaria a Floresta Amazônica — e que acabou sendo abandonada pelos militares.
Muitos anos mais tarde, depoimentos recolhidos por antropólogos e pelo Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas mostraram que a obra passou por cima de casas, roças e até algumas sepulturas dos tenharim.
Os próprios índios foram recrutados para trabalhar no desmatamento para a abertura da estrada. Não houve remuneração. De acordo com estes depoimentos, a Paranapanema — a empresa que tocou parte da obra da Transamazônica — entregou apenas “uma caixa cheia de bonecas para as crianças”.
Em depoimento à Procuradoria, registra o livro, Macedo Tenharim contou como era a relação com a obra que viria ser um símbolo dos planos da ditadura militar brasileira (1964-1985) de “integrar” a Amazônia: “Trabalhamos tipo escravidão”.
Além de ser paga pelo governo para abrir a estrada, a Paranapanema obteve autorização federal para instalar projetos de extração mineral na região. Uma mina para exploração de estanho funcionou durante décadas na região. E o quadro ficou mais dramático: a Transamazônica trouxe doenças que não tinham registro entre esses índios. Em 1974, uma epidemia de sarampo acometeu “quase toda a população” tenharim.
Na década seguinte, o território foi invadido por serrarias. Agora, a ameaça das queimadas está concentrada numa área próxima da chamada Rodovia do Estanho, aberta pela Paranapanema para escoar minério.
Sobram teorias e falta certeza de como os focos de fogo começaram, um cigarro aceso jogado num campo seco, uma descarga elétrica de um raio no solo, mas as queimadas em tantos pontos diferentes também podem estar ligadas ao desmatamento e ao roubo de terras dos índios.
Segundo o cacique Gilvan Tenharim, já houve desmatamento de uma área que, segundo ele, tem até lotes sendo vendidos.
“Teve área que já foi desmatada e soubemos que uma parte está sendo loteada. Já denunciamos para a Funai [a Fundação Nacional do Índio, órgão do governo federal], mas ainda não sabemos o que aconteceu.”
Estrago da queimada ainda é desconhecido
Os tenharim têm uma terra de 1,8 milhão de hectares no sul do Amazonas. A área, que equivale a 30 vezes a da cidade de Nova York, é o lar de 1.200 índios, distribuídos em 12 aldeias e dois clãs: gavião real e mutum. O membro de um dos clãs só pode se casar com um integrante do outro clã.
A extensão da área queimada ainda está sendo estimada pelos índios, que têm uma brigada de 23 homens e 2 mulheres que combatem o fogo. A brigada, chamada de PrevFogo, foi treinada pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente). As aldeias contaram no ano passado com uma picape para ajudar na vigilância, mas acabaram devolvendo o veículo porque o acordo com o governo foi desfeito no fim do ano.
O cacique Gilvan disse que os índios estão temerosos com as declarações recentes do presidente Jair Bolsonaro sobre a política de demarcação de terras indígenas e de conservação das áreas protegidas. Capitão da reserva do Exército, o político de extrema-direita fez carreira política como admirador confesso da ditadura militar.
“As falas dele abrem um leque muito grande para isso acontecer [o desmatamento] e, como ele é contra novas demarcações, as que estão em andamento terão um obstáculo muito grande pela frente. Nós não temos esse problema de demarcação, mas precisamos estar com estrutura para fazer o monitoramento quase que diário das terras. Isso ia impedir as queimadas”, disse o cacique.
O INPE, a agência espacial brasileira, registrou mais de 80 mil focos de fogo neste ano. Em uma reunião nesta terça-feira (27) com governadores de Estados da Amazônia brasileira para discutir políticas de combate aos incêndios, Bolsonaro preferiu criticar as demarcações de terras indígenas feitas pelos governos anteriores. “Foi uma irresponsabilidade essa política adotada no passado, usando o índio ao inviabilizar [economicamente] esses Estados”, disse Bolsonaro.
A própria convocação da reunião havia sido uma resposta do governo Bolsonaro às críticas e à pressão internacional por conta dos incêndios na região amazônica. Com o tema atraindo a atenção do noticiário em todo o mundo e motivando protestos contra Bolsonaro, o governo brasileiro colocou cerca de 44 mil soldados à disposição para ajudar a combater os incêndios.
morte do pai de Gilvan Tenharim, o cacique Ivan, em 2013, causou um conflito entre os índios e moradores de Humaitá, um dos municípios próximos. Depois do suposto assassinato, moradores da cidade foram mortos dentro da terra indígena.
As duas populações viveram dias de conflito e, segundo o presidente das associações tenharim, Márcio Tenharim, 32, o episódio foi superado. “Tentamos resolver as tensões com o diálogo”, disse o líder indígena.
O BuzzFeed News percorreu uma área de 60 km de extensão dentro da Terra Indígena Tenharim Marmelos. É possível ver resquícios das queimadas por pelo menos dez quilômetros. À beira da Estrada do Estanho, aberta décadas atrás pelo garimpo, os campos estão queimados e o fogo atingiu parte das florestas.
Os brigadistas usam como base uma unidade do ICMBio do Parque Nacional dos Campos Amazônicos, que faz divisa com a terra índigena.
Com viaturas e quadriciclos, eles combatem os focos de incêndio ao cair da tarde para evitar o contratempo dos ventos e do excesso de calor.
Brigadistas ouvidos pelo BuzzFeed News relataram que o fogo ainda é forte depois das áreas de mata, no interior da floresta, onde estão mais campos.
A linha de fogo chega a mil metros em extensão.
Os brigadistas travam uma verdadeira luta corporal com as queimadas. Usam abafadores de borracha e tanques de água acoplados a suas costas.
(Por Tatiana Farah, repórter do BuzzFeed em São Paulo e enviada especial ao coração da floresta)