“Minha Mãe é uma Peça” tem recorde de bilheteria e evidencia sucesso de gays estereotipados e sem mensagem política
Escandalosa, divertida, espalhafatosa, sensível, debochada e um tanto solitária. Essas são algumas das marcas que definem Dona Hermínia, personagem que caiu nas graças dos brasileiros.
Na semana passada, a protagonista da franquia “Minha Mãe É uma Peça” ganhou motivo para gritar de sua sacada em Niterói –sua terceira incursão nas telonas se tornou a maior arrecadação do cinema nacional, e já soma R$ 161,8 milhões nas bilheterias.
Para alguns, a mãe estrela da narrativa é um retrato autêntico de muitas matriarcas do país, só que com uma importante ressalva –Dona Hermínia, fora das telas, é um homem.
Escandaloso, divertido, espalhafatoso, sensível, debochado e um tanto solitário. Essas também são características muitas vezes atribuídas aos homens gays. E é daí que vem boa parte da graça de “Minha Mãe É uma Peça”.
O perfil é incorporado por Paulo Gustavo, um homem gay fazendo crossdressing, que acopla muitos dos estereótipos associados aos homossexuais à feminilidade da mãe de uma família brasileira.
Essa maçaroca de visões pré-concebidas compõe um batalhão de personagens gays do cinema e da televisão nacionais que, assim como Dona Hermínia, se fixaram no imaginário popular.
Jorge Lafond e a escandalosa Vera Verão, Marcelo Serrado e o divertido Crô, Orlando Drummond e o espalhafatoso Seu Peru, Tom Cavalcante e o sensível Pit Bicha, Chico Anysio e o debochado Painho, Mateus Solano e o solitário Félix. Não é preciso ir longe para se lembrar de personagens coloridos que conquistaram, seguindo um mesmo padrão, o público nacional.
Público do qual fazem parte muitos dos 50% de brasileiros que declararam ser contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em pesquisa publicada pelo Ibope em 2018. Naquele mesmo ano, o Datafolha divulgou estudo que diz que 74% da população acredita que a homossexualidade deve ser aceita, no entanto.
E é em meio a esse dualismo que “Minha Mãe É uma Peça 3” foi alçado ao sucesso indiscutível. E se ele encabeça a lista de filmes mais rentáveis do cinema nacional, um outro ranking, o de maior público, tem no primeiro lugar de seu pódio “Nada a Perder”, de 2018, cinebiografia do bispo Edir Macedo –o mesmo que disse em 2011 aceitar os homossexuais, “mas nunca, jamais, o homossexualismo”.
Vale lembrar que o longa-metragem cristão teve sua bilheteria inflada, com ingressos distribuídos em templos e salas supostamente lotadas, mas que, na verdade, não tinham público tão significativo. Ainda assim, foi um sucesso.
Mas como pode um mesmo país ter um assassinato ou suicídio de LGBT a cada 19 horas, segundo relatório do Grupo Gay da Bahia, e também ter Dona Hermínia como um de seus bastiões cinematográficos contemporâneos?
“Eu acho que o sucesso desse filme não tem a ver com o fato de o Paulo Gustavo ser gay ou de interpretar uma mulher”, diz Lufe Steffen, cineasta e autor do livro “O Cinema que Ousa Dizer Seu Nome”, em que passeia pela produção cinematográfica LGBT no Brasil.
“Eu acredito que o sucesso de filmes como esse, e de outras comédias no mesmo estilo, se deve à celebridade que está à frente deles. Elas são nacionalmente conhecidas, levam as pessoas ao cinema. Seria espantoso se fosse um filme politicamente LGBT, com um Paulo Gustavo que militasse pela causa gay.”
E, quando o assunto é levantar bandeiras, Paulo Gustavo já se viu em maus lençóis dentro da própria comunidade à que pertence. No fim do ano passado, ele avisou que haveria um casamento gay em “Minha Mãe É Uma Peça 3” –mas nada de beijo.
Ele foi criticado e tentou se explicar. “Precisamos sim enfrentar e combater essa era raivosa e preconceituosa! Eu entendo esses questionamentos, acho legítimo e importante! Mas eu acho que estão mirando no alvo errado! Não sou ativista, militante, mas sou um ser político! Minha bandeira é minha vida”, ele postou nas redes sociais. Procurado, o ator não quis dar entrevista.
Na visão de Steffen, há um limite de até onde vai a aceitação do grande público à diversidade que vê nas telas, o que pode explicar a inexistência de um beijo no casamento do filho gay de Dona Hermínia.
“Quando se trata de aceitar um gay, a grande massa aceita desde que seja uma bicha louca, folclórica, circense, que é engraçada e inofensiva, porque não ataca a ‘família brasileira'”, diz. “Esse tipo de bicha sempre estará à margem da família, ela não ameaça. Se for um outro tipo de bicha, que quer ter uma família ‘igual à nossa’, aí não, já é demais.”
O cineasta deixa claro que existem, sim, homens gays como os retratados nas grandes comédias nacionais, mas eles não estão sozinhos. “O problema não é a existência desse tipo de bicha, mas só isso é ruim.”
João Silvério Trevisan, autor de livros como “Devassos no Paraíso”, concorda. “Eu acho que existe um determinado tipo de vivência à margem que é facilmente digerida”, diz.
“O que me parece óbvio é que filmes como ‘Minha Mãe É uma Peça’, que fazem sucesso tão estrondoso, na verdade se pautam pela possibilidade de sucesso. É claro que não existe uma fórmula absoluta para isso, mas existem maneiras de evitar problemas.”
Segundo os escritores, aplicar estereótipos a gays do cinema e da TV suaviza a carga política que, automaticamente, esse tipo de personagem carrega, mostrando ao público trejeitos e perfis existentes em seu imaginário –e não surpreendendo com algo que causaria estranheza ou aversão.
“São estereótipos que não fazem mal a ninguém [de fora da comunidade], que não incomodam, pelo contrário”, explica Trevisan, que diz que personagens como Crô, vivido por Marcelo Serrado, são descolados da sexualidade que, na verdade, deveria ser o fator determinante de sua existência enquanto homossexual.
O próprio Serrado, que é heterossexual, disse à coluna de Mônica Bergamo, neste jornal, em 2012, não querer “que minha filha esteja em casa vendo beijo gay às nove da noite”.
“Para muitas pessoas, os homossexuais não têm relacionamentos afetivos”, explica Jaqueline de Jesus, professora de psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro. Ela retoma a ausência de beijo no casamento gay de “Minha Mãe É uma Peça 3”. “Enquanto pensarmos nessa lógica de não mostrar algo porque choca, vai continuar chocando.”
Mas se engana quem pensa que esses impasses são exclusivos do Brasil. A produção audiovisual de países como os Estados Unidos, por exemplo, é tão carregada de “bichas escandalosas” quanto as daqui.
Amada por muitos gays ao redor do globo, “Sex and the City”, por exemplo, tinha como um de seus personagens o extravagante Stanford, homossexual que servia de acessório às protagonistas glamorosas da série. A própria estrela da trama, Sarah Jessica Parker, disse em evento promovido pelo Wall Street Journal que ali “não havia conversa substancial sobre os LGBTs”.
“A estereotipia é uma forma de economia cognitiva, é algo mais fácil e menos complicado do que ter que pensar a vida como ela de fato é, complexa e diversa”, diz Jaqueline de Jesus. “Quando aparecem na ficção, os estereótipos reduzem quem são as pessoas.”
Gays memoráveis
Crô
Marcelo Serrado vivia o assistente submisso e pomposo de Christiane Torloni na novela ‘Fina Estampa’; o sucesso foi tanto que ele ganhou dois filmes
Félix Khoury
Mateus Solano era o vilão ambicioso e sarcástico de ‘Amor à Vida’ e protagonizou o primeiro beijo gay da Globo
Pit Bicha
Tom Cavalcante tinha um bigode marcante, que dava ares de ‘macho’ ao personagem sensível e adepto à cultura do couro de ‘Zorra Total’
Seu Peru
Orlando Drummond e, mais tarde, Marcos Caruso viveram o aluno da ‘Escolinha do Professor Raimundo’, que era delicado e gostava de rosa
Painho
Chico Anysio teve como um de seus personagens mais marcantes o pai de santo gay, afeminado e zombeteiro
Vera Verão
Jorge Lafond ganhou fama com a personagem de maquiagem e roupas chamativas, que repetia o bordão ‘epa, bicha não!’
Aníbal
Paulo Gustavo pode não viver um homem gay em ‘Minha Mãe É uma Peça’, mas ganhou personagem com perfil parecido em ‘Os Homens São de Marte… E É Pra Lá que Eu Vou’
(Fonte: Folha Press)