Baixo isolamento social pode deixar MS sem leitos para coronavírus
Domingo (31, a taxa de isolamento social de Mato Grosso do Sul foi de 46,2% –como se, a cada 100 pessoas, 46 ficassem em casa–, a terceira pior do país. Na Capital, foi ainda pior: 45,6%, ficando atrás apenas de Goiânia (GO) e mostrando uma alta exposição da população ao novo coronavírus (Covid-19). Ainda assim, o baixo número de casos no Estado parece estimular a população a tentar levar a vida normalmente, fato que tem preocupado seriamente as autoridades locais de Saúde sobre os impactos futuros, como a sobrecarga nos hospitais.
“A população está querendo pagar para ver”, sintetizou ao Jornal Midiamax o secretário de Estado de Saúde, Geraldo Resende. No mesmo domingo, momentos antes de iniciar transmissão para atualização dos números do coronavírus no Estado, ele se dizia impressionado ao seguir para o Parque dos Poderes e ver famílias inteiras sem máscaras, não respeitando o distanciamento social e caminhando normalmente.
“Havia grupos inteiros de pessoas conversando. Recebemos informações de festas em bairros com quantidade enorme de pessoas. Mandaram até imagens de concurso de Miss Infantil. São pessoas querendo se expor, sentindo-se mais poderosas que um vírus que matou mais de 500 mil pessoas no mundo e trouxe a economia global à bancarrota”, afirmou o secretário.
Até domingo, haviam sido registrados 1.489 casos de coronavírus. Nesta terça-feira (2), foram 1.646, ou 159 a mais em 2 dias, com preocupação redobrada em relação à Grande Dourados –a segunda maior cidade do Estado assumiu a liderança no volume de doentes. Até há três semanas atrás, o avanço diário mal superava 30 casos.
O secretário lembrou que a taxa de isolamento do Estado, no início da pandemia, manteve-se razoável, para em seguida se consolidar entre as piores do país. “E a taxa de isolamento de hoje repercute daqui a 14, 15 dias. Com a baixa adesão já estamos experimentando neste momento uma curva de ascendência, em crescimento exponencial”.
Crescente de casos
Estudos da SES (Secretaria de Estado de Saúde) já projetavam o aumento no volume de pacientes a partir da 21ª semana do ano. A taxa de contaminação do Estado está próxima de 4 (ou seja, cada infectado pode contagiar até 4 pessoas), ante a média nacional de 1,9. “E isso vai levar um grupo, um contingente específico, a depender de leitos clínicos e de UTI. E o trabalho ao longo desses 5 meses, com envolvimento de servidores do Estado e municípios, vai por água abaixo pois, certamente, poderemos repetir o que ocorreu em alguns Estados”.
Infectologista da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) e da Fundação Oswaldo Cruz, Julio Croda também registra um aumento importante no volume de casos nas últimas semanas, ao mesmo tempo em que o isolamento social e outras medidas de proteção, como o uso de máscaras (que precisa ter a adesão de 80% da população para surtir efeito ao evitar a circulação do vírus), vêm caindo.
“Se as pessoas não contribuírem, o poder público não vai dar conta”, alertou ele, apontando que, embora a Saúde Estadual já contabilize mais de mil leitos clínicos e cerca de 300 de UTI no sistema público exclusivamente para casos de Covid-19, eles seriam insuficientes caso ocorra a possível explosão no volume de casos.
“As pessoas não estão adotando a retórica de só sair de casa em caso de extrema necessidade. E vamos ver o resultado disso no futuro: tivemos um aumento importante de casos nas últimas duas semanas e, se continuar assim, a tendência é um aumento também de internações e óbitos”, previu o infectologista, ao advertir que, “se mantivermos a atual aceleração do ritmo de contágio, no fim de julho não teremos mais leitos de UTI”.
Geraldo Resende concordou. “Há risco de faltar leito porque, de uma hora para outra, podemos ter um ‘boom de casos’ e vamos necessitar. Dourados já demonstra isso: o número de ocupação de leitos lá equivale a mais de 60% do Estado”, disse o secretário, destacando a maior demanda para os grupos de risco. “Na hora em que se contaminarem famílias, que o vírus chegar aos bairros mais periféricos, vulneráveis, teremos uma procura muito grande de leitos de UTI”.
Imunização do rebanho
Tratamentos contra o coronavírus ainda têm sido colocados à prova –a cloroquina, por exemplo, está sendo abandonada no exterior, mas ainda segue como orientação válida no Brasil desde que o paciente assine um termo de ciência sobre ser uma medicação experimental para a Covid-19. A vacina ainda segue em pesquisas. Por isso, medidas de prevenção, como o uso de máscaras e o distanciamento social são reiteradamente apontados como a melhor saída até aqui.
“Estamos fazendo um esforço para que não tenhamos mortes, mas, infelizmente, a volta à normalidade que tem ocorrido, como se nada ocorresse, preocupa a todos na Saúde”, afirmou Geraldo, cobrando também o uso de máscaras como forma de proteção. “Sabemos que estamos em curva ascendente e com necessidade de muitos leitos. O risco de colapso existe, trabalhamos para isso não acontecer. É um cenário que alertamos por conta da desobediência que verificamos no Estado, com essa baixa adesão [ao isolamento]”.
Croda explica que o processo de “imunidade de rebanho”, a produção natural de anticorpos a partir da exposição de, pelo menos, metade da população ao coronavírus, ainda não foi atingida em nenhum local do mundo. “Se fôssemos por esse caminho faltariam leitos clínicos e de UTI antes mesmo de chegar a ela. Faltaram leitos em outros países”.
Baixo volume de infectados
Apesar do avanço da doença, Mato Grosso do Sul segue entre os Estados com menos casos e mortes no país. Segundo o infectologista da UFMS, as medidas de isolamento adotadas até aqui justificam esses números, pois impediram o ingresso de novos casos e uma disseminação mais rápida do coronavírus. Esse foi justamente o cenário que ocorreu em Dourados, onde o acréscimo de casos novos pode levar a cidade à liderança no volume de infectados no Estado.
“Não houve introdução de casos novos. Os casos que surgiram, provavelmente, foram testados precocemente, inclusive os contatos isolados. Por enquanto, as medidas de isolamento funcionaram, mas à medida que aumenta o volume de casos, o poder público perde a capacidade de testar e isolar. O aumento exponencial [de infectados] supera a capacidade de testagem e da busca ativa de casos por contato, daqueles que têm de ser monitorados”.
Julio Croda ainda apontou a diferença entre Mato Grosso do Sul e países nos quais, embora haja proximidade com grandes focos, o coronavírus foi mantido sob controle –casos, por exemplo, de Japão, Coreia e Taiwan. “Lá, a capacidade de organização é maior que no Brasil do ponto de vista da população, que adere às medidas de controle e à recomendação para ficar em casa se tiverem sintomas, das pessoas em contato com os doentes não saírem, e do uso de máscaras, este independentemente da pandemia. E aqui ainda há muita fake news, muita informação que circulou na internet em termos de tratamento que gerou desinformação”.
Por fim, o infectologista ainda salientou que o adiamento do pico de contágio –a data em que o Estado atingiria o ápice de casos–, antes esperado para abril e maio, é justamente prova de que as medidas adotadas até aqui funcionaram.
“Se aqui adiou [o pico] é exatamente porque funcionaram as barreiras sanitárias e o isolamento. Quanto mais se adia, mais se funciona. Mas é preciso destacar que não há imunidade porque, até aqui, sabemos que menos de 1% da população de Mato Grosso do Sul adquiriu o coronavírus”, disse Croda, projetando o total de casos confirmados sobre a população do Estado –os 1.568 infectados até aqui representam 0,05% dos 2,7 milhões de sul-mato-grossenses.
(Por Humberto Marques, do Midiamax)