Cabeleireiro que viveu duas ditaduras ganhou livro com homenagem da neta
De frente para rua, a varanda de Luis Samudio é um convite daqueles para uma boa conversa. Aconchegada pelo sorriso do dono e o verde das inúmeras samambaias, fica difícil acreditar sobre a pauta que nos levou até ali. Um homem resistente que traz nas memórias de uma vida prisões e torturas sofridas, mas que não foram capazes de apagar o sorriso do avô que hoje comemora ser personagem de um livro.
“Eu era um homem preparado para enfrentar o inimigo”, responde Luis quando questionado sobre sua alegria após tantos momentos tristes vividos.
Nascido no dia 19 de agosto de 1936, em Caraguataí, no Paraguai, ele vive em Campo Grande desde 1960 quando fugiu da ditadura do Paraguai, após ascensão do general Alfredo Stroessner que se manteve no poder durante três décadas
No país de origem, ao sair do Exército, Luis passou a atuar como membro e presidente da Juventude Liberal, no departamento de San Pedro, mas foi preso. Quatro meses depois ganhou a liberdade. Alegria que durou pouco, até 1960, em um Dia de Reis, quando passeando por um festa popular soube que seria transferido em poucas horas para a prisão paraguaia. “Então eu fugi. Peguei o que eu tinha e fui embora para fugir da prisão”, recorda.
Ele diz que conseguiu permanecer durante meses escondido na cidade de Mariscal até chegar de avião a Pedro Juan, na fronteira entre Brasil e Paraguai. De lá partiu para Campo Grande com objetivo de seguir até o Uruguai, mas o destino fez curvas diferentes.
Por aqui se tornou músico formando um trio “Los Querubines” ao lado de outros jovens paraguaios e durante o dia atuava como cabeleireiro. Certo dia se apaixonou pelos azuis de Julia com quem foi casado até 2005, ano de sua partida, vítima de problemas cardíacos.
Juntos formaram uma família com seis filhas e tiveram que vencer a distância quando Luis, mesmo longe da ditadura paraguaia, foi preso em Campo Grande, pela ditadura militar que assolava o Brasil desde 1964. “Fui preso porque outro guerrilheiro se rendeu aos militares fazendo delações. Stroessner então mandou um alerta ao presidente Castelo branco dizendo que era um perigo para o regime paraguaio e também o brasileiro”.
Luis foi condenado a três anos de prisão, sendo dois anos quartel e um ano no presídio de Cuiabá, este, um dos piores momentos da vida. “Sim, fui torturado”, afirma. E acrescenta memórias. “Lembro-me de um dia acordar na água, sentindo muito frio, era um espaço isolado em que eles jogavam muita água na gente. Outra vez, fiquei em espaço isolado, com muitos bichos. Tinha ratos e baratas. Passei horas acordado, quando não aguentava mais adormecia”.
Na prisão, Luis diz que não houve sentimentos tão ruins. “Eu não conseguia sentir ódio e nem raiva, juro. O que eu sentia era saudade da minha esposa e da minha família. Mas sabia que eu estava preparado para tudo aquilo. Eu era um homem pronto para enfrentar meus inimigos”.
Do lado de fora, a esposa Julia que esperou o marido até o último minuto. “Fiquei com medo de ela me esquecer, mas ela me esperou”.
Ao deixar a prisão, Luis recebeu um comunicado do Ministério da Justiça do Brasil para que deixasse o país em um mês. “Foi quando eu e Julia corremos para o cartório de Terenos e casamos em 1967. Foi lá porque era o único lugar que o certificado de casamento saía na hora”, lembra.
Luis então foi se dedicar a profissão de cabeleireiro. Seu primeiro trabalho após a prisão foi na Galeria São José, na Rua 14 de Julho, em salão que foi adquirido por ele anos depois. “Era o salão Joia e todo mundo me conhecia por lá”, lembra sorridente.
Com o fim da ditadura no Brasil, em 1985, Luis pode três quatro anos depois comemorar com os amigos o fim da ditadura Stroessner. “Fui até Assunção, onde encontrei amigos para gritarmos juntos pelas ruas: Viva a democracia”.
Questionado sobre as reverências à ditadura nos últimos tempos, Luís faz gesto negativo com a cabeça. “Só quem viveu e sofreu neste período sabe o que isso significa. E para quem não viveu, a gente reza por educação, só ela pode fazer todo mundo entender o que é democracia”.
Animado, ele mostra alguns exemplares do livro escrito com a sensibilidade da neta Laura Samudio Chudecki. “Ela cuidou tão bem da minha história, que o livro me faz olhar o passado e continuar seguindo em frente”.
(Por Thailla Torres, do Campograndenews)