Cresce a adoção de crianças com deficiência no Brasil
No ano passado, uma “cegonha” sobrevoou a vida de Taís Rodrigues, de 38 anos. Não trazia um bebê, mas uma mensagem: havia uma menina, de apenas um ano, sem lar. Fã do desenho da Galinha Pintadinha, como vários meninos e meninas na idade dela. E com atraso no desenvolvimento, como tantas crianças brasileiras. A cegonha, assim chamada por Taís, era uma voluntária em um grupo de apoio à adoção.
Taís já estava à espera de um filho por meio da adoção, mas quando entrou na fila para adotar havia descartado, inicialmente, a possibilidade de ser mãe de uma criança atípica. O contato com cursos online sobre o assunto começou a abrir os horizontes da família, até que ela recebeu a mensagem da cegonha. Maria (nome fictício), hoje com 2 anos e meio, foi adotada em setembro de 2021.
“Construímos o amor todos os dias. Começamos a criar vínculos e hoje a gente não vê mais a casa sem ela”, conta a mãe, que mora em São Paulo. Maria nasceu com síndrome alcoólica fetal, causada pela exposição ao álcool durante a gravidez. Depois da adoção, passou por internações e cirurgias. Hoje, consegue sentar sozinha, ficar de pé e já ensaia os primeiros passos. “Eu falo ‘filha’ e ela olha para mim porque sabe que sou a mãe dela.”
Em abrigos, é comum encontrar crianças com deficiências ou problemas de saúde. Já entre quem deseja adotar ainda são raros os pretendentes. Entre 2019 e o ano passado, o número de adoções de crianças com deficiências, doenças infectocontagiosas ou problemas de saúde cresceu, conforme o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento. Hoje, entre as adoções, 9,6% são de crianças com problemas de saúde. Dois anos atrás, o porcentual era de 2,3%. Em relação a deficiências, a taxa foi de 0,6%, em 2019, para 3% em 2021. E, para doenças infectocontagiosas, o porcentual no mesmo período avançou de 0,3% para 1,3%.
Os números ainda são considerados tímidos, mas, segundo especialistas, já refletem os resultados de ações de tribunais de Justiça e das “cegonhas”, em grupos de apoio à adoção – há dezenas espalhados pelo Brasil. Além de ampliar essas taxas, o desafio agora é incentivar processos mais difíceis, como de adolescentes ou grupos de irmãos com deficiência. “Não é um processo rápido, mas temos visto cada vez mais a adoção de crianças maiores, crianças especiais e grupos de irmãos”, diz a juíza Noeli Salete Tavares Reback, presidente do Colégio de Coordenadores da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça. Noeli cita normas que preveem agilidade na adoção de crianças com deficiência e outras diretrizes que estabelecem prazos para processos.
Hoje, para entrar na fila da adoção, é preciso fazer um curso sobre o tema. Algumas dessas formações são oferecidas pelos tribunais; outras, por grupos especializados na área. Durante o cadastro na Justiça, os pretendentes indicam qual o perfil de criança ou adolescente está disposto a receber (o que inclui etnia, idade e doenças). Esses critérios podem ser alterados durante o processo.
Para a advogada Cecília de Albuquerque Coimbra, vice-presidente do grupo de apoio à adoção Acolher, em Mairiporã, na Grande São Paulo, o acesso à informação pela internet estimula mudanças. “Temos conhecimento maior sobre autismo ou doenças relacionadas à gravidez, como a síndrome alcoólica fetal. Sabemos os tratamentos”, diz Cecília, que atua há 20 anos como voluntária na área. “Hoje raramente encontramos um casal que não aceite uma criança HIV positivo”, exemplifica.
No grupo Acolher, há rodas de conversa com encontros periódicos para pretendentes começarem a desenhar seus projetos de adoção. Histórias de quem adotou – percalços e alegrias – também são apresentadas. A troca de informações é fundamental. Aquele que fica em casa esperando o telefone tocar tem o perfil mais restrito. Até quem ainda nem está na fila de adoção, mas se interessa pelo tema, pode buscar palestras nas redes sociais.
Embora desejáveis, mudanças no perfil para receber crianças ou adolescentes com deficiência ou doenças devem ser avaliadas com cuidado. “Não pode ser algo para que o filho chegue antes”, explica Jussara Marra, vice-presidente da Associação Nacional de Grupos de Apoio à Adoção (Angaad). Como há poucos pretendentes no perfil, essas adoções costumam andar mais rápido. As famílias são orientadas a não dar um passo além da conta, sob risco para a criança. “Incentivamos que isso seja muito refletido, levado até para terapia, para que adoções que demandam preparação aprofundada sejam um sucesso.”
A assistente social Erika Santos, de 38 anos, buscou o máximo de informações relacionadas ao transtorno do espectro autista (TEA) depois de receber a ligação do fórum, sobre um menino de 2 anos, com grau moderado a severo. Em um abrigo desde o primeiro mês de vida, no Vale do Jequitinhonha, já havia recebido a visita de uma pretendente que recusou seguir porque ele não fazia contato visual.
“Quando a gente engravida, não consegue prever quem vem”, diz Erika. No início da aproximação com João (nome fictício), quando ele estava no abrigo, confessa ter sentido um “frio na barriga” por não conseguir arrancar um sorriso do bebê. Logo passou. “Entendi que não posso cobrar da criança. A cobrança tem de ser para o adulto”, afirma.
Em janeiro deste ano, João ganhou um lar e hoje, quando caminha pela rua com a família, sabe reconhecer a casa onde vive. Na cozinha, pega o leite na geladeira e aponta para o micro-ondas. Acorda cantando. Também chama a “mamã”, o “papá” e diz até “amo irmão” – Erika tem outro filho, de 11 anos. “O amor é idêntico. A dedicação é maior porque a necessidade é maior. Eu me sinto mãe demais, mãe de dois.” Para Erika, os estímulos recebidos em casa têm ajudado João a avançar na comunicação.
Estudos internacionais já demonstraram que há dificuldade em criar vínculos duradouros nos abrigos, por melhor que sejam. “Muitos aspectos do desenvolvimento dependem de a criança se sentir segura, estabelecer relações de confiança. O que acontece muitas vezes nas instituições é que as pessoas (cuidadores) estão ali por determinado período”, diz Elisa Altafim, doutora em saúde mental e especialista em parentalidade da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal. A convivência familiar é direito da criança e adolescente.
Além de palestras e cursos para pretendentes, conhecer de perto a realidade de abrigos é importante, diz Silvana do Monte Moreira, presidente da Comissão de Adoção do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Hoje, há 29,8 mil crianças ou adolescentes acolhidos, ou seja, que não estão nas famílias de origem. A idade média das crianças e dos adolescentes disponíveis para adoção é de 9 anos e há mais adolescentes cadastrados no sistema do que pretendentes.
“É muito difícil amar o que não se vê”, diz Silvana. O IBDFAM apoia iniciativas como o projeto Abrigo de portas abertas, que promove visitas de pretendentes a instituições de acolhimento no Rio. Outra ferramenta cujo uso é incentivado é a busca ativa: quando os perfis de crianças são apresentados aos pretendentes. Isso já é feito por alguns tribunais com a ajuda de “cegonhas” de grupos de apoio à adoção, mas se tornou regra após a publicação de portaria neste mês pelo Conselho Nacional de Justiça. Pretendentes poderão ter acesso à fotografia e a depoimentos de crianças ou adolescentes que tiveram esgotadas todas as possibilidades de buscas nacionais e internacionais. A busca ativa deve incluir meninos e meninas com deficiência.
Quando decidiu adotar uma criança, Arely Vieira, de 39 anos, não estabeleceu limites. A experiência com o caçula, diagnosticado com transtorno do espectro autista, já havia feito a família passar a enxergar com um olhar mais sensível a situação de crianças em desenvolvimento atípico. Aos 9 anos de idade, a Bete, uma menina com deficiências múltiplas, chegou para aumentar a família.
“Na casa de acolhimento não existe criança perfeita. Ela vem com dificuldades, traumas”, afirma Arely, que mora com o marido, um motorista de ônibus, no interior paulista. A adoção da Bete foi feita com tempo e cuidado para que principalmente o caçula, Samuel, se adaptasse à irmã. Além de Samuel, Arely tem outros dois filhos biológicos, hoje com 22 e 16 anos.
Em 2018, a família decidiu voltar para a fila de adoção. Quase instantaneamente foi avisada sobre a presença de um adolescente de 14 anos com tetraplegia em um abrigo. “Imaginei um rapaz grande, mas era um menino muito pequeno, pesava 9 quilos, e tinha o corpo muito debilitado. Era surreal”, lembra Arely. “Pedi para pegar no colo e, naquela hora, dei à luz o Henrique.” (Fonte: Estadão)