Da roça para o tribunal, desembargadora negra cita o racismo e a superação pela educação

Acima, Adenir e a família, em Naviraí. Abaixo, recebendo troféu como aluna campeã no atletismo

Adenir Alves da Silva Carruesco, hoje desembargadora no Tribunal Regional do Trabalho de Mato Grosso, conta uma história de racismo e de superação pela educação. Em entrevista ao jornal Primeira Página, ela discorreu sobre sua trajetória de vida. “O que me tornei foi sonhado antes mesmo de eu nascer”, foi assim que ela começou a nossa conversa.

Tudo começa numa plantação de café, quando aos 16 anos, dona Geralda Dias da Silva, mãe da então desembargadora, fazia a colheita dos grãos. Durante o trabalho, ela via uma jovem professora passar e pensava – um dia terei uma filha e ela se tornará professora.

Aos 19 anos, Geralda ficou grávida e deu à luz uma menina, que recebeu o nome de Adenir, o mesmo nome daquela professora que passava pelo cafezal. Para que a criança pudesse ir à escola, a família se mudou da roça para Naviraí, em Mato Grosso do Sul.

Um detalhe importante é que dona Geralda, que sonhava que a filha se tornasse professora, só conseguiu ter o primeiro documento de identificação aos 19 anos. Até então, ela era desconhecida perante a lei.

Na escola, desde muito cedo, Adenir enfrentou muitos desafios, especialmente por ser negra. Inclusive, chegou a ser agredida verbalmente pela irmã mais velha de uma colega de sala. Na época, ela tinha entre 8 e 9 anos. “Desde cedo aprendi que precisava filtrar o que ouvia e guardar o que ia me incentivar a crescer. Acima de tudo, sabia que o estudo é que faria chegar onde queria”, contou ela.

Os desaforos não fizeram com que ela desistisse ou se reprimisse. Além disso, o fato foi importante para mostrar que ela tinha uma família que a defenderia onde quer que fosse. “Uma coisa que acho importante ressaltar é que, mesmo pequena e sem entender tanto da vida, eu sabia que tinha uma família que me defenderia de tudo. E, mesmo meus pais, não tendo estudo, me apoiariam de todas as formas”.

Outra curiosidade deste tempo, de quando era pequena, era que ela levava um tomate de lanche. “Eu era apaixonada por tomate”. Já na adolescência, ainda tendo que “lutar contra a corrente”, Adenir recebeu o apoio do professor de educação física, Napoleão, que fez com que ela enxergasse o valor e o potencial que tinha.

“Ele me colocou para treinar vôlei. Agora imagina jogar vôlei com essa estatura?! Mas, ele dizia que eu era capaz, me incentivava, dizia que eu era bonita e aquilo me deu forças. Só que para jogar, eu precisava ter notas boas, então eu estudava tanto quanto me dedicava ao esporte. Depois do vôlei, descobri o atletismo, e ganhar medalhas me mostrou que eu poderia ir muito além do que pensava”.

Quando Adenir começou o ensino médio, optou por fazer magistério, já que o grande sonho da mãe era que ela se tornasse professora. No primeiro ano, ela foi convidada para substituir uma professora que dava aulas na zona rural.

“Eu pegava o ônibus bem cedo e quando chegava na escola ainda estava escuro. Na época tinha 16 anos, então eu abria a escola, deixava as luzes apagadas, deitava e ficava quietinha até que os alunos começassem a chegar. Porque a escola ficava na beira da estrada e passava muita gente, então eu ficava quieta para que ninguém soubesse que eu estava lá”, lembrou ela.

E tem um episódio que poderia ser trágico, mas que foi uma lição de amor, desta época. Um dia, o ônibus quebrou e não passou para que Adenir pudesse voltar para casa, em Naviraí. Como começou a escurecer, ela se escondeu atrás de uma moita e ficou bem quietinha.

“Quando meus pais perceberam que eu não chegava, meu pai chamou um táxi e gastou tudo que tinha para ir até a escola e me resgatar”.

Dom de ensinar – Mas, como os sacrifícios sempre resultam em boas coisas, ao final de três meses dando aula em uma turma multiseriada, todas as crianças sabiam ler e escrever.

“Para mim foi uma realização. Mesmo em tão pouco tempo, senti que tinha contribuído com a vida daquelas crianças de alguma forma”.

Quando terminou o magistério, ela se inscreveu no científico como era chamado naquela época. “Me matriculei e fiz o ensino médio de novo só para não parar de estudar”.

O racismo – Nesta mesma época, ela se candidatou a uma vaga para um agência bancária do município, mas mesmo sendo capacitada, não foi selecionada. “No entanto, o edital tinha um requisito que eu não preenchia aos olhos da sociedade. O anúncio dizia que era necessário ter ‘boa aparência’ e naquele tempo, negro era considerado sem boa aparência”.

Deste dia em diante, Adenir disse a si mesma que se candidataria a vagas de trabalho para as quais pudesse ser selecionada por sua capacidade.

Assim, fez concurso para o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul e foi aprovada, aos 18 anos, para trabalhar no Fórum.

Até então, ela pensava em cursar Educação Física, porque queria fazer por outras crianças o que o professor Napoleão tinha feito por ela.

No entanto, com o trabalho no Fórum, foi surgindo o interesse pelo Direito e ela então decidiu prestar o vestibular.

Passou para o curso de Direito, em Dourados, a 138 km de Naviraí. Na mesma época surgiu uma vaga na 3ª Vara Cível e ela foi novamente selecionada, assim conseguiu trabalhar e estudar. Com o salário que recebia, conseguiu pagar a faculdade, custear sua moradia e ainda ajudar os pais.

Nas horas vagas, ela dava monitoria para os colegas, era voluntária no juizado especial de pequenas causas e ainda jogava vôlei. Com tanta coisa para fazer, os anos de estudo passaram rápido. Sem contar que, não tendo condições de comprar livros, ela emprestava e transcrevia as partes mais importantes.

“Eu lia o mesmo livro, pelo menos três vezes. Uma para saber o conteúdo, depois voltava destacando as partes importantes e por fim transcrevia o que era importante para poder estudar depois, já que não sobrava dinheiro para fazer cópias”.

Em 1988, ela conheceu o amor e se casou com um argentino. Em 1991, ela concluiu Direito e decidiu que estudaria para a magistratura.

Em 1994 foi aprovada no concurso para juíza do Trabalho em Mato Grosso. Passou por vários municípios, até firmar residência em Rondonópolis, a 218 km de Cuiabá. Lá também atuou como professora nas faculdades de Direito.

Em 2020, foi nomeada desembargadora federal, por merecimento. E, portanto, transferida para Cuiabá.

“Sempre digo que o que sou foi sonhado por minha mãe antes de eu nascer, porque eu realizei o sonho dela e fui professora, mas o estudo que ela tanto queria para mim, me mostrou que eu poderia ir além”.

Além do sonho da mãe, Adenir carrega, até hoje, os valores que aprendeu com a família, como o apoio e incentivo incondicional aos filhos, a importância do conhecimento, o alicerce para que os sonhos sejam alcançados e, especialmente, que somos capazes.

“Hoje, tento, por meio de projetos, incentivar o estudo, o apoio às crianças e às famílias e assim, retribuir socialmente um pouco do que conquistei”.

Outro ensinamento que ela carrega para a vida e faz questão de destacar é que os desafios vêm para impulsionar, não para nos parar. “O fato de ter sido desclassificada lá naquela seleção do banco, me impulsionou a conquistar os espaços por mérito e me fez estudar, não desistir”.

(Por Lidiane Moraes, do Primeira Página)

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