Duro não é ser mãe, mais difícil ainda é ser mãe de “preto ou de gay”
Ser mãe nunca foi fácil e o desafio fica bem mais complicado quando o coração tem motivo extra para apertar toda vez que o filho sai de casa. Mãe de negro sofre com racismo que teima em machucar até uma criança. Mãe de gay pena diante da rejeição e da zombaria que começa na escola e ganha força, inclusive, dentro da família.
Ao lado do marido, a advogada Silvia Constantino, de 37 anos, mãe do Kayodê, de 13, e Arakan, de 16, começou a desenhar a resistência dos meninos já no batismo, com os nomes de origem africana. A autônoma Angelita Marques do Reis, de 49 anos, descobriu que teria de ser ainda mais guerreira quando o engenheiro civil Marcos Marcos Mota Medalha Junior, de 24 anos, assumiu ser gay ainda na adolescência.
Na casa de Silvia todos são negros, mesmo que no registro de nascimento conste pardo. “Eu sou negra de origem de família humilde e o meu marido também, a gente trabalhou e conquistou algumas coisas porque tivemos oportunidade, justamente o que o negro precisa ter. Então, muitas vezes a gente tem que ser duas ou três vezes melhor que um branco para ganhar um espaço. E esse é o discurso dentro de casa com as crianças”, descreve Silvia.
Ela reproduz discursos que são comuns entre mães que sabem das diferenças impostas nas ruas. “Eu sempre digo a eles que a gente vive um momento de ódio, em que as pessoas são intolerantes. Nós, enquanto negro, temos que ter muito cuidado. Porque se o negro está parado ele é suspeito e se corre é bandido”, pontua. “Numa abordagem à noite, não vão parar o branco com os olhos claros, vão abordar o negro que está com a mochila nas costas”.
Toda vez que os meninos deixam a casa da mãe a frase “já sei” é repetida por eles, ainda assim, Silvia não se priva de reforçar os cuidados. “Até com o modo de vestir deles eu tenho que me preocupar. Por mais que eles tenham uma formação, ninguém vai conversar antes de abordá-los. Então, a gente tem que se precaver diante de toda essa violência, se eu fechar os olhos para isso, eu posso deixar meus filhos na escola e não os ver mais”.
Além de muita conversa, Silvia e o marido fazem da reflexão uma rotina na vida dos filhos. “A gente faz questão de ensinar a história, quem nós somos, de onde viemos e qual a importância do negro no Brasil”.
Como a família inteira é negra, uma simples ida a um restaurante da cidade é oportunidade para os quatro refletirem juntos sobre o racismo. “Quando a gente entra em alguns restaurantes, praticamente todas as pessoas param para olhar. Mas elas não olham porque somos bonitos, e sim porque somos diferentes e o fato de estarmos no lugar incomoda”, explica.
Nesse momento, fazer contas enquanto aguardam o pedido se torna fundamental para os meninos. “Quantos negros você vê aqui?”, questiona a mãe. “E quem são as pessoas que estão nos servindo?”, completa.
O questionamento descreve de forma muito didática a falta de oportunidade do negro no mercado de trabalho. “É nessa hora que eu tenho chance de mostrar a eles, mesmo no meio do nosso lazer, que a gente precisa sair dessa linha serviçal. Negros também podem ser médicos, advogados, procuradores, juízes ou qualquer outra profissão”.
Como mãe, mulher negra e criadora de uma Comissão da Igualdade Racial na Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso do Sul (OAB-MS), Silvia não abre mão de defender os filhos, mas faz com que cada conversa e discurso dentro de casa se transforme em força para que eles lidem sozinhos lá fora, quando, em algum momento, o mundo tratá-los com diferença. “Não basta ser negro, tem que se reconhecer como. E a partir do momento que você se reconhece, você começa a ter postura para se posicionar, e isso é muito claro dentro de casa. Eu faço eles terem noção do perigo e que racismo e injúria racial são crimes, e que eles não podem achar que é uma brincadeira”.
Meu filho é gay – No coração de Angelita, mãe do Marcos, mora o mesmo aperto. Desde que o filho assumiu a orientação sexual, ela nunca mais deixou de se preocupar quando ele sai de casa. Onde há intolerância, o número de agressões e assassinatos a pessoas LGBT assusta.
Mas para Angelita o que mais dói é a tentativa do mundo de privar o filho de amar. Ela ainda se recorda das primeiras vezes que pessoas próximas souberam que o filho era gay. “Uma delas disse que não tinha problema nenhum ele ser gay, mas que ele não podia ficar se expondo e nem beijar ninguém em público. Ouvir isso me doeu e dói ainda hoje. Como assim o meu filho não tem direito de amar e se comportar da maneira que ele quiser?”, questiona.
Ser mãe de um filho gay mostrou a Angelita a verdadeira cara do preconceito, que a fez mudar até sua maneira de se impor, descreve. “O preconceito é terrível, só que mais absurdo é como as pessoas acham que elas não são preconceituosas. Ainda hoje vejo pessoas que se referem a ele e outros amigos como “aquele veadinho”, “aquela bicha”, em tom de desprezo. Foi nesse momento, que eu busquei conhecimento e entendi que eu só podia minimizar isso ao lado dele”.
O início dessa descoberta se assemelha com a história de muitas mães. Angelita percebeu que o filho gostava de meninos no começo da adolescência, mas esperou o momento certo para que Marcos contasse. Quando a revelação chegou, coração de mãe foi a mil. “Não me assustei, mas me preocupei muito com a integridade física dele, a ponto de não querer que ele participasse de caminhadas e parada LGBT com medo de que algo acontecesse com ele na rua”.
Mas tudo mudou quando ela resolveu encarar a linha de frente. “Eu digo que literalmente levantei a bandeira, porque percebi que ter medo não ajuda na causa, não resolve o preconceito. Por mais que o mundo seja intolerante, é se posicionando que a gente luta pelo nosso espaço”.
Angelita também percebeu diferenças passou a demonstrar sua luta pelo espaço do espaço do filho. “Eu sinto que quando estou a frente, mostrando para as pessoas que meu filho é gay e me orgulho disso, as pessoas que me conhecem, mesmo que rede social, tratam meu filho diferente. Se eu estivesse contra ele, com certeza ele estaria mais vulnerável e o outro se sentiria no direito de ferir. Mas comigo na linha de tiro isso ameniza”, diz a mãe cheia de orgulho.
(Por Thailla Torres, do Campograndenews)