Existe racismo estrutural no Brasil?

Por Francisco das Chagas Lima Filho *

No Dia da Consciência Negra, que deveria servir para se refletir a respeito do pesado fardo histórico da escravidão dos negros, que durou mais de trezentos anos e dos nefastos efeitos que até hoje se abatem sobre a população negra, e da inaceitável discriminação dessas pessoas na sociedade, fomos surpreendidos com as imagens do covarde e brutal assassinato em Porto Alegre – Rio Grande do Sul, de mais um negro – João Alberto – por seguranças brancos de uma rede de supermercados que atua no Brasil e, que, embora ainda não se saiba, pode ter motivação racial.

Esse intolerável e criminoso episódio transformou um dia que era para ser de reflexão e de comemoração de conquistas que, apesar de pequenas, não deixam de representar vitórias dos negros, se transformou, diria Vinicius de Morais, “de repente, não mais que de repente”1, em um dia de lamento, de dor, de sofrimento, de tristeza e de indignação, que teve repercussão internacional e gerou nova onda de protestos aqui no Brasil especialmente nesse fim de semana.

Infelizmente, e ainda que alguns dirigentes deste pais teimem em negar, o trágico passado histórico de mais de trezentos anos de escravidão dos negros deixou arraigado na sociedade brasileira um racismo estrutural, que, infelizmente ainda permeia as relações sociais e de poder e, que, agora tem se mostrado com mais frequência e força2, na discriminação dos negros quanto ao acesso à vários direitos fundamentais como educação, saúde, trabalho e especialmente no tratamento que alguns desinformados, inclusive agentes do Poder Público e também no setor privado, têm dado às pessoas negras, violando um dos mais fundamentais direitos humanos: o direito de ter direitos3 e de ser tratadas com igual respeito e a consideração devida, qualquer que seja a origem, a cor da pele, a orientação sexual, ou qualquer outra característica pessoal, como tem sido demonstrado, quase que diariamente pelo noticiário da mídia, e a violência contra João Alberto, por seguranças brancos, confirma que o preconceito, que leva à discriminação racial, ainda continua sendo uma realidade em muitos lugares do mundo, e no Brasil não é diferente por mais que alguns negacionistas tentem não reconhecer.

Como lembra Silvio Luiz de Almeida4, “o racismo não é um ato ou um conjunto de atos, tampouco pode ser resumido a um fenômeno restrito às práticas institucionais; é, antes e sobretudo, um processo histórico e político em que as condições de subalternidade ou de privilégio de sujeitos racializados, é estruturalmente reproduzida e que considerar o racismo como parte da estrutura não exime a responsabilidade das pessoas em combater o racismo”, à medida que pensar o racismo como parte da estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de condutas racistas e não é um álibi para racistas. Pelo contrário, entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna ainda mais responsáveis pelo combate ao racismo e aos racistas5.

E o assassinato de João Alberto e de outros negros, é a prova inconteste dessa realidade6, o que, e apesar dessa tragédia, nos leva reforçar a necessidade de uma maior reflexão a respeito dos direitos humanos, nomeadamente das pessoas negras e daquelas que para padrão dominante numa sociedade desigual e excludente, seriam “diferentes”.

Dizer que não existe racismo no Brasil, demonstra completa ignorância do que acontece no dia-a-dia da população negra e de outros segmentos considerados pela sociedade como “diferentes”.

E para se constatar essa realidade, basta lembrar que pelos dados do Atlas da Violência, em 2018 os negros representaram 75,7% das vítimas de homicídios. Segundo esse estudo, a discrepância das taxas de homicídio entre brancos e negros significa que para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram vítimas de morte por assassinatos, na grande maioria homens jovens.

Em Mato Grosso do Sul, essa tragédia não é diferente. Os negros representaram 63,42% dos homicídios de 2017, ou seja, 418 das 659 mortes no Estado foram de homens negros.

E considerando os dados do Brasil como um todo, a taxa de homicídios de negros saltou de 34 para 37,8 por 100 mil habitantes entre 2008 e 2018, o que representa aumento de 11,5% no período, enquanto entre os não negros no mesmo comparativo registrou-se uma redução de 12,9% (de uma taxa de 15,9 para 13,9 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes).

Esses dados evidenciam que, ao contrário do que tentaram convencer algumas autoridades do Governo, existe sim, de forma explicita ou velada, um racismo estrutural no Brasil que merece ser combatido e não negado. Mas, ao lado do combate ao racismo, necessita-se de políticas públicas em diversas áreas, especialmente no campo da educação e da formação profissional como, aliás, recomenda o Estatuto da Igualdade Racial, pois apenas assim deixaremos de assistir indignados, mas quase sem nenhuma ação concreta – em que pese todo o arcabouço legal interno e os Tratados Internacionais que interditam a descriminação e a violência racial, dos quais o Brasil é signatário – os assassinatos e aos reiterados atos de violência e discriminação dos negros.

De fato, como acertadamente afirmava Nelson Mandela, a educação é o mais importante e eficaz instrumento de transformação social e por ela certamente se conscientizará a sociedade quanto ao dever moral e jurídico, de respeito aos negros que, contrariamente aos que ainda pensam alguns desinformados ou mal intencionados, merece e têm o direito fundamental de serem tratados sem qualquer distinção e com a consideração devida, em relação ao branco, salvo quanto às qualidades morais e capacidades técnicas, inclusive no campo das relações de trabalho, como previsto na CONVENÇÃO 111 da Organização Internacional do Trabalho – OIT e na CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL da Organização das Nações Unidas – ONU, e que têm plena aplicabilidade no Brasil, pois incorporadas ao ordenamento interno, obrigando não apenas o Estado, mas também ao particular, em face da eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

É preciso e urgente mudar esse paradigma de discriminação e violência contra os negros que até aqui tem imperado, pelo do respeito aos direitos fundamentais dessas pessoas em igualdade com os não negros evitando-se que atos como aquele de Porto Alegre e de outras regiões do país, voltem a repetir, inclusive com a punição exemplar daqueles que ainda entendem que existem pessoas superiores e inferiores.

* O autor é Desembargador e Diretor Executivo da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 24ª Região/MS

[1] MORAIS, Vinicius. Soneto de Separação.

[2] Basta lembrar daquele episódios ocorridos em São Paulo e no Rio de Janeiro em que pessoas foram covardemente agredidas por agentes do Estado e por particulares apenas em razão da cor negra e ainda aquela de uma senhora, mais recentemente, que chamou um negro de macaco chimpanzé e tantos outros, o que evidencia a necessidade de se discutir esse tema e conscientizar a sociedade da necessidade de respeitar o semelhante qualquer que sejam suas escolhas ou cor, origem ou outras características de que são providas. Afinal, a vida de negros e todos os seres humanos conta e conta muito.

[3] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo–Antissemitismo, Imperialismo, Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 332.

[4] ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen Livros, 2019, p. 46.

[5] Lembra Angela Devis: “não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”. Disponivel em: <https://br.pinterest.com/pin/42995371433842518>. Acesso em 21.11.2020.

[6] A Organização das Nações Unidas (ONU) disse em um comunicado que “a violenta morte de João, às vésperas da data em que se comemora o Dia da Consciência Negra no Brasil, é um ato que evidencia as diversas dimensões do racismo e as desigualdades encontradas na estrutura social brasileira“.

 

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