Indígenas do MS enfrentam fome e aumento de 7.500% dos casos de Covid-19 em 17 dias

ndígenas do povo Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, enfrentam insegurança alimentar em meio à pandemia –  Fotos: Picasa / CIMI/Agência Porantim

Em meio ao isolamento social por conta da pandemia do coronavírus, o povo Guarani Kaiowá, segunda maior etnia do Brasil, enfrenta quadros de fome ao mesmo tempo em que os casos da doença avançam exponencialmente em suas aldeias. Somente na reserva indígena de Dourados, no Mato Grosso do Sul, o número de infectados saltou de um para 74 num período de 17 dias.

A situação é agravada pela falta de assistência do governo. Lideranças indígenas relatam que a distribuição de cestas básicas pela Fundação Nacional dos Índios (Funai), responsável por defender os direitos desses povos, não tem contemplado todas as aldeias.

Em novembro do ano passado, o presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier da Silva, assinou um memorando no qual proibia viagens de servidores do órgão a terras indígenas não homologadas ou regularizadas. Na prática, a decisão afetaria atendimentos relacionados a regularização fundiária, proteção territorial e amparo a políticas públicas.

De acordo com a fundação, existem 235 terras indígenas à espera de regularização. Dessas, 117 estão em fase de estudo, 75 são declaradas (autorizadas para serem demarcadas) e 43, delimitadas (dependem de análise do Ministério da Justiça). Cerca de 500 áreas aguardam reconhecimento.

Justamente nesses locais de insegurança territorial, marcados por conflitos e invasões, que indígenas reportam mais casos de fome e subnutrição. O cenário já era observado antes mesmo da pandemia, mas acabou acentuado pelo isolamento social. A região Sul do país e o estado do Mato Grosso do Sul estão entre as áreas mais impactadas, além de comunidades espalhadas pela Amazônia.

“Antes da chegada do coronavírus, já estávamos enfrentando problemas de fome. A gente depende da ida à cidade para conseguir comprar. Quando começou a pandemia, não foi mais possível sair. Tem aldeias que ficam bem distantes do centro urbano e às vezes nossa entrada é barrada. Os indígenas que estavam trabalhando começaram a ser dispensados e não têm mais como conseguir dinheiro”, disse Tonico Benites, antropólogo e um dos líderes Guarani Kaiowá.

Segundo Benites, a determinação da Funai de deixar de atender terras não homologadas criou um clima de “desespero” em seu povo, já que a maioria das famílias depende das cestas básicas. Em cerca de 15 acampamentos, afirma o antropólogo, não há quase nada para o preparo de refeições. Após recomendação do Ministério Público Federal (MPF), em janeiro, a fundação enviou alimentos no mês seguinte, mas interrompeu de novo a distribuição a partir do início da pandemia. As terras regularizadas continuaram recebendo subsídios do governo estadual.

Na aldeia Nhanderu Marangatu, no município sul-mato-grossense de Antônio João, em torno de 160 das 400 famílias ainda não têm cadastro junto à Funai ou ao governo estadual para ter direito às cestas básicas, de acordo com Alenir Aquino, integrante da comissão de liderança da aldeia. Com o confinamento, muitos não conseguem recursos para sobreviver, motivo pelo qual a comunidade tem solicitado doações.

“Estamos pedindo até ajuda ao município, mas não é suficiente. Tem famílias com seis, sete filhos. Dois pacotinhos de arroz não duram. E, sem poder sair, não dá para eles se virarem”, afirmou Aquino.

Para a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Sonia Guajajara, a Funai ignora a Constituição Federal ao condicionar a assistência apenas às terras regularizadas e rompe com sua função institucional de guardiã dos direitos indígenas.

“Se está num acampamento, numa terra demarcada ou homologada, o atendimento tem que ser igual. O território indígena não é só aquele demarcado, mas sim aquele que é ocupado tradicionalmente pelos povos. Esse argumento deles é para justificar a negligência. A Funai não vai atender porque tomaram essa decisão de ignorar a presença indígena no país”, afirmou.

A APIB também tem buscado angariar doações e recursos para povos mais necessitados durante a pandemia. No entanto, Guajajara ressalta que a ação não é de competência da associação, mas do Estado brasileiro.

“A gente não pode assumir essa responsabilidade do Estado. A gente faz essa mobilização toda para atender de forma complementar”, disse a coordenadora. “A gente sempre trabalhou para que pudesse atender de forma igualitária independente da etapa do processo de demarcação”.

Em despacho ao qual ÉPOCA teve acesso, a Funai justificou que a distribuição gratuita de alimentos “não constitui obrigação legal” do órgão e citou a “inexistência de suporte orçamentário” para tal demanda. Ainda se baseia em uma decisão da justiça federal do MS que confere à União a tarefa de assistir famílias que vivem em acampamentos não regularizados.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) ratificou, em 2017, a decisão liminar em primeira instância de que o governo estadual deve promover mensalmente a entrega de cestas básicas de alimentos às famílias indígenas em áreas regularizadas, enquanto a distribuição a famílias em áreas não regularizadas ficaria a cargo da União.

O MPF rebateu o argumento da Funai e entendeu que, além do órgão pertencer à União, “estaria se beneficiando da própria torpeza”, uma vez que a não demarcação das terras indígenas foi ocasionada pela demora da própria autarquia em atuar dentro das suas funções legais.

A informação que o MPF recebeu foi de que a Funai não entregou adequadamente as cestas básicas a comunidades indígenas do MS em março e abril desse ano, mas retomou o procedimento em maio, embora indígenas afirmem que só houve promessa por enquanto.

Armazém da Conab/MS cheio de alimentos enquanto indígenas passam fome Foto: Ascom MPF/MS

Avanço do coronavírus

Nas últimas duas semanas, a preocupação com o avanço de casos de coronavírus em aldeias do estado também aumentou consideravelmente. O primeiro indígena infectado no MS foi constatado no dia 13 de maio, na reserva de Dourados. Era uma funcionária da empresa JBS, onde acreditam que ela tenha sido contaminada. A partir daí, os números dispararam.

Segundo boletim epidemiológico divulgado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) no último dia 30, havia 76 indígenas com Covid-19 no estado – 74 deles na reserva de Dourados, a maior do país com mais de 15 mil indígenas. Ao todo, Mato Grosso do Sul tem cerca de 61 mil indígenas, divididos em oito etnias. A principal é a Guarani Kaiowá, com aproximadamente 43 mil membros, conforme dados do último censo, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010.

O balanço não aponta óbitos no estado, mas o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei/MS) apura a morte de uma indígena de 58 anos, no sábado (30), que apresentou sintomas da doença. A Sesai registra 1.737 casos confirmados e 70 óbitos por Covid-19 em todo o Brasil até o último dia 4. Organizações indígenas sustentam que há subnotificação.

Em boletim semanal divulgado na terça (2), a Apib estimou 1.868 contaminados e 182 óbitos entre 78 povos indígenas atingidos pela doença no país. Esse valores representam uma taxa de letalidade de 9,7% entre os indígenas.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), expressou, em nota, preocupação com a disparada de casos entre os Guarani Kaiowá e responsabilizou os órgãos públicos de saúde pela “grave letargia nas ações; inaplicabilidade dos planos de contingência; falta de recursos financeiros, estruturais e humanos”.

Indígenas reclamam de falta de estrutura e de equipe da Sesai para atender as aldeias. O MPF pediu que a União seja obrigada a fornecer equipamentos de proteção individual (EPIs) ao Dsei/MS, bem como a contratação de pessoal, para monitoramento rápido dos casos, e abastecimento do estoque médico. O ó

rgão avalia que há omissão por parte da Sesai e do Dsei/MS.

“A Sesai não tem estrutura nenhuma para atender casos de coronavírus. Já é insuficiente para atender as demandas atuais. Eles não se adaptaram à Covid-19”, afirma Guajajara. “O que fazer agora se o vírus já chegou? Quando ele chega, não atinge uma ou duas pessoas, é como um vendaval que sai arrastando todo mundo. Esse modo de vida comunitário aumenta a propagação com muito mais rapidez”, disse.

Outro lado

Em nota, a Funai afirmou que as comunidades indígenas do Mato Grosso do Sul estão recebendo alimentos em ação articulada pelo governo federal e que, até o momento, distribuiu 7.775 cestas básicas a indígenas em situação de vulnerabilidade social. Disse ainda que as entregas vêm sendo realizadas pelas Coordenações Regionais da Funai Campo Grande, Dourados e Ponta Porã.

A fundação informou que, para as próximas semanas, está prevista a entrega de outras 40 mil cestas adquiridas pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) com recursos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

A Sesai respondeu que os 34 DSEIs têm realizado normalmente ações de atenção primária, cada um de acordo com a realidade geográfica e logística de sua região. Informou que, por isso, as visitas às aldeias podem ocorrer diariamente, semanalmente ou mensalmente, a depender da forma de acesso ao local.

A secretaria também destacou que tem apoiado a Funai na distribuição de cestas e que, até março, 46,6% das crianças indígenas menores de 5 anos passaram por acompanhamento alimentar e nutricional. Disse ainda que suas equipes de saúde foram orientadas a priorizar o atendimento domiciliar e busca ativa por casos de coronavírus.

(Por Rodrigo Castro, da Revista Época)

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