Moro pede demissão e revela ‘interferência política’ de Bolsonaro sobre a Polícia Federal

O ex-ministro afirmou que “o presidente disse mais de uma vez que queria ter alguém com quem ele pudesse ligar e colher informações” na PF – Foto: Reprodução

Após sucessivos embates com o presidente Jair Bolsonaro, o ex-juiz da Lava-Jato Sergio Moro decidiu pedir demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O estopim foi a exoneração do delegado Maurício Valeixo do cargo de diretor-geral da Polícia Federal (PF).

Durante o discurso feito no final desta manhã onde anunciou sua demissão, ex-juiz da Lava-Jato afirmou que, quando aceitou o convite para assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública, recebeu “carta branca” do presidente Jair Bolsonaro para tocar a pasta e disse que sempre teve preocupação de interferência do Executivo na Polícia Federal. “No final de 2018 recebi o convite do então eleito presidente e me foi prometido carta branca para todos os assessores, incluindo Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal”, disse.

No início da sua fala, o ministro lamentou a realização do evento e, apesar de o auditório estar lotado de jornalistas, secretários e servidores da pasta, disse que tentou evitar aglomeração em meio à pandemia do novo coronavírus. “Queria evitar esse evento, mas não foi por minha opção”.

Ele lamentou também o fato de que na quinta-feira houve 407 óbitos devido à covid-19. Moro também fez “reflexões gerais” sobre a evolução do combate à corrupção no país, segundo ele, “para explicar minhas decisões”.

Lembrando dos anos da Lava-Jato, que começou em 2014, Moro disse que a operação “mudou patamar de combate à corrupção. Foi um trabalho do Judiciário, Ministério Público e Polícia Federal”, disse. Ele também disse, que, nesse período, foi garantida a autonomia da PF nos trabalhos de investigação. “O governo da época tinha inúmeros defeitos, mas foi fundamental manutenção da autonomia da PF. Isso permitiu que os resultados foram alcançados”, disse.

O ministro também afirmou que não condicionou a sua nomeação como ministro a uma indicação para a cadeira de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). “Isso seria assumir um cargo pensando em outro. Fui criticado e entendo as críticas. Mas o meu objetivo era levar maior efetividade ao combate à criminalidade”, disse.

Segundo ele, o único pedido que fez a Bolsonaro foi que, caso algo lhe acontecesse enquanto fosse ministro, que sua família ganhasse uma pensão, para não ficar desassistida, já que havia aberto mão da aposentadoria como juiz, após 22 anos de magistratura.

Pressão de Bolsonaro na PF

O ex-juiz da Lava-Jato afirmou que vem sofrendo, desde o ano passado, pressão do presidente Jair Bolsonaro para trocar o comando da Polícia Federal. Segundo ele, a troca de Valeixo “seria uma violação da promessa de carta branca” dada a ele no início do governo e que “estaria clara uma interferência política na PF”.

“Isso gera um abalo na credibilidade não minha, mas do governo também. A despeito de todos os problemas, não houve trocas durante a Lava-Jato”, comparou. “Imagina se durante a Lava-Jato se Dilma ou Lula ficassem ligando pro superintendente em Curitiba”, afirmou.

Segundo Moro, Bolsonaro disse que queria alguém no comando da PF para quem pudesse ligar e obter informações sobre o andamento da investigações. Também disse, sem especificar, que o presidente disse que tinha preocupação com o andamento de “alguns inquéritos”. “Seria permitir a interferência política. O presidente disse mais de uma vez que queria ter alguém com quem ele pudesse ligar e colher informações. Não é o papel da PF prestar esse tipo de informações”, disse.

Segundo ele, o presidente disse que também tinha a intenção de trocar superintendentes, inclusive o do Rio de Janeiro, como na primeira crise do ano passado. “Trocas sem que me fossem apresentadas uma razão aceitável”, disse.

O agora ex-ministro também afirmou que buscou postergar a decisão de deixar o governo, que sinalizou que poderia concordar com a troca no Valeixo do futuro. “Falei para ele que teria impacto pra todos e seria negativo. Mas pra evitar uma crise no meio de uma pandemia, sinalizei substituir por alguém que representasse continuidade”, disse.

Moro afirmou que sugeriu alguns nomes, como o atual número dois da PF, Disney Rossetti. “Fiz essas indicações, mas não obtive resposta.”

Moro também disse que não sabe quem vai ser o escolhido do presidente para o cargo na PF. Citando o secretário de Segurança do Distrito Federal, Anderson Torres, considerado um nome político e não técnico, o ministro disse que ele passou mais tempo no Congresso na PF. “O grande problema não é quem entra, mas por que entra”, disse. Ao falar das conquistas que teve na pasta, Moro disse que teve apoio do de Bolsonaro “em alguns projetos, em outros nem tanto” e que “a partir do segundo semestre de 2019, começou pressão por trocas na PF”.

O ex-juiz afirmou que não foi comunicado da exoneração de Valeixo e que, diante da publicação no Diário Oficial da União, só lhe restou pedir demissão do cargo. Ele também afirmou que Valeixo “jamais pediu oficialmente exoneração” e que ele recebeu telefonema dizendo que a exoneração sairia “a pedido”.

“Não existe nenhum pedido feito de maneira formal. Isso foi ofensivo e não é verdadeiro. Esse último ato mostra que o presidente me quer fora do cargo”, disse. “Tive outras divergências com o presidente e muitas convergências, mas meu entendimento foi de que não tinha como aceitar essa substituição. Há uma questão envolvendo minha biografia”, disse,

O agora ex-ministro afirmou que “seria um tiro na Lava-Jato” se outros governos tivessem feito substituições na cúpula da PF. “Tenho que preservar minha biografia e o compromisso que assumi com o presidente de combater crime”, disse.

Moro voltou a afirmar que Bolsonaro havia lhe dado “carta branca” para nomear o diretor-geral da PF e não cumpriu essa promessa. “Não tendo uma causa consistente e percebendo que pode levara relações impróprias, não posso concordar”, disse, em relação à saída de Valeixo.

Por fim, ele agradeceu ao presidente a nomeação feita lá atrás, e anunciou que deixaria o cargo. “Vou começar a empacotar minhas coisas e o encaminhamento da minha carta de demissão”, disse. “Não posso prosseguir sem condições de trabalho. Nem sendo forçado a aceitar mudanças com resultados imprevisíveis”, disse. Moro também afirmou que a “Polícia Federal vai resistir a qualquer espécie de interferência”. Sobre os planos futuro, Moro brincou que vai primeiro descansar e depois procurar um novo emprego, porque não havia enriquecido em cargos públicos. “Infelizmente, deixar a magistratura foi um caminho sem volta. Vou descansar um pouco Vou procurar mais adiante um emprego; não enriqueci como magistrado ou ministro”, disse.

Ex-juiz foi surpreendido com demissão de delegado

Moro foi surpreendido com a publicação da demissão de Valeixo no Diário Oficial da União (DOU). Interlocutores do ministro dizem que o agora ex-ministro não deu aval para essa decisão e que a exoneração não foi “a pedido”, como consta no texto.

Na quinta-feira, Bolsonaro avisou a Moro que pretendia trocar o comando da PF. O ex-ministro, então, fez um ultimato e disse que deixaria o cargo se isso acontecesse.

Durante todo o dia, ministros “bombeiros” da ala militar tentaram convencer Bolsonaro a adiar a demissão de Valeixo para encontrar um nome de consenso entre Moro e o presidente. Parlamentares bolsonaristas foram às redes dizer que era mentira que Bolsonaro trocaria o comando da PF e garantir Moro ficaria no governo.

Assessores de Moro afirmaram que ele teria ficado no cargo caso conseguisse indicar o sucessor de Valeixo. A publicação no DOU da exoneração do seu braço-direto, na madrugada, implodiu essa possibilidade.

Moro afirmou a diversos interlocutores que estava preocupado que a mudança na cúpula da PF tivesse como objetivo enfraquecer a autonomia da corporação e que isso pudesse comprometer a condução das investigações.

Moro chegou ao governo em janeiro de 2019 com status de “superministro” após abrir mão de 22 anos de magistratura. Como juiz da Lava-Jato, foi alçado a herói nacional com a bandeira de combate à corrupção.

Desde que assumiu a pasta, no entanto, Moro acumulou uma série de derrotas e esteve em rota de colisão com o presidente em diversas situações.

As diferenças com Bolsonaro se acentuaram ainda mais em meio à pandemia do novo coronavírus. Com um discurso favorável ao isolamento social, Moro estava mais próximo do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, que foi demitido na semana passada.

Nas últimas semanas, Moro chegou a se recolher e evitou fazer críticas na maneira como Bolsonaro se comportava em meio à pandemia. A estratégia fez com que o então ministro passasse a ser cobrado por parte da opinião pública por ter desaparecido em meio à crise

(Por Isadora Peron, Murillo Camaroto e André Guilherme Vieira, do Valor Econômico)

 

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