Professor Acelino escreve na Folha de S. Paulo: Pela democracia contra a democracia

PELA DEMOCRACIA CONTRA A DEMOCRACIA

 

Acelino Rodrigues Carvalho*

 

Um fenômeno tão aberrante quanto curioso tem marcado a sociedade brasileira nesses tempos de tensão quase permanente entre instituições de governo e a nossa principal instituição de garantia: o Supremo Tribunal Federal. Certas pessoas e grupos políticos, a pretexto de estarem defendo a democracia, têm atuado exatamente no sentido contrário. Até recentemente ouvia-se que manifestações de pessoas acampadas em frente aos quartéis do Exército eram democráticas, ainda que os manifestantes estivessem postulando uma intervenção militar contra o resultado das eleições, isto é, contra o próprio método democrático. Era comum nesse movimento a exibição de faixas e a circulação de vídeos que, em defesa do Estado democrático de direito, atacavam a Suprema Corte utilizando como slogan a frase: supremo é o povo.

A mais recente dessas aberrações consiste na apresentação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 50/23, que pretende autorizar o Congresso Nacional anular decisões do Supremo Tribunal Federal quando entender que a corte ultrapassou os limites de sua competência. Conforme publicou o Portal da Câmara dos Deputados no último dia 29/09/2023, o autor da proposta, deputado Domingos Sávio, justificou sua postura afirmando que: “Se o Supremo Tribunal Federal, de forma controversa, decide e julga contrariando a própria Constituição e, portanto, a ampla maioria dos representantes do povo, o estado democrático de direito é colocado em risco”.

Cabe aqui uma pergunta: qual o motivo para tantas aberrações? Tudo indica trata-se de uma incompreensão acerca do tema: o conceito de democracia sofreu mudanças ao longo da história, não assentando atualmente apenas na ideia de maioria. Com efeito, a expressão: Estado Democrático de Direito, consagrada no artigo 1º da nossa Constituição, aponta para uma específica forma de organização política, explicitada no parágrafo único do mesmo artigo, à qual corresponde uma específica concepção de democracia: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Aqui se fundem dois princípios de racionalidade da organização política aos quais correspondem a concepções de liberdade dos antigos e a concepção de liberdade dos modernos: a democracia é a fonte de legitimidade do poder; a Constituição impõe limites ao exercício desse mesmo poder. Em conclusão, tem-se um Estado democrático e constitucional de direito ou, simplesmente, uma democracia constitucional. Este modelo de organização política viabiliza-se através da separação de poderes, não como uma separação estanque, mas como um sistema de freios e contrapesos, no qual cabe ao Poder Judiciário o papel de interprete último da Constituição e não ao parlamento.

Evidentemente que o Supremo pode errar; quando isso ocorrer, não havendo qualquer recurso contra a decisão, resta a crítica política, científica etc., com vistas ao seu aprimoramento institucional. Jamais, porém, a revisão de suas decisões pelo parlamento. Uma pretensão dessa natureza constitui-se não apenas numa postura antidemocrática, mas acima de tudo autoritária.

*Advogado, especialista em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional, mestre em Direito Processual e Cidadania e doutor em Direito Público, professor associado da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, autor de Constituição e jurisdição: legitimidade e tutela dos direitos sociais. Curitiba: Juruá, 2018.

(Artigo extraído da Folha de S. Paulo, publicado em 06.10.2023https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2023/10/a-pec-que-permite-derrubar-decisoes-do-supremo-e-democratica-nao.shtml )

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