Bonecas Pretas: símbolo de cultura, resistência e identidade
Muito mais que um brinquedo, as bonecas pretas são uma representação cultural, um símbolo de resistência e reafirmação de identidade. Fala sobre o processo de conexão pessoal, reconhecimento, autoaceitação, luta contra o racismo e o preconceito da sociedade. As bonecas podem ser consideradas uma forma de combate ao racismo, pois a criança se identifica e reconhece seu lugar de protagonismo. Elas impactam a todos, pois mostram a diversidade que existe e ajudam a moldar a sociedade como um todo.
Atuando há mais de 22 anos na área, a psicóloga Simone Santos Ferraz Silva, de 47 anos, especialista em Psicopedagogia e Saúde da Família, acredita que a brincadeira é uma das coisas mais sérias e necessárias no universo infantil. As brincadeiras de faz de conta, que são tão comuns nesta fase, colaboram para a construção do psiquismo infantil.
Entendendo a importância da representatividade da diversidade sociocultural desde a infância, as bonecas se tornam objetos de identificação simbólica, ajudam no desenvolvimento integral e na construção da identidade.
“Em sociedade somos todos exemplos uns para os outros. Se todos soubéssemos o que representa o brincar ao longo da infância, teríamos brinquedos de todas formas, cores e tamanhos nas prateleiras. A falta de brinquedos como bonecas e bonecos negros é tão prejudicial quanto a ausência de heroínas e heróis negros seja nas vitrines ou na TV. Nossa infância negra e miscigenada precisa entender que pode, que é possível e que existem caminhos saudáveis para chegarmos lá. Um dos caminhos para este aprendizado é alguém, ou algum brinquedo, ocupar esse imaginário primeiro. Quando eu tenho uma boneca da cor da minha pele, eu entendo o que realmente importa é poder de fato se ver ali, naquela cor da boneca, naquele cabelo de diferentes tipos. Com as bonecas pretas a criança negra pode se ver, ver sua família, pode se valorizar, se sentir representada e sonhar ser o que quiser ser”, afirma a psicóloga.
Conforme os dados de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 56,1% dos brasileiros são negros, o que acaba contrastando com os dados da Organização Avante-Educação e Mobilização Social em 2020 onde aponta que apenas 6% das bonecas produzidas no Brasil são negras.
No ano de 2020, Mato Grosso ocupou o primeiro lugar no ranking de registros de casos de racismo por estado proporcional ao número de habitantes, conforme os dados da 14° edição do Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2022 os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública apontaram como o 5º estado com o maior número de casos de injúria racial no país.
Em um país majoritariamente negro, mas com ausência de visibilidade e um Estado tão preconceituoso, como funciona a questão da representatividade para as crianças pretas?
De pano e com retalhos, Cristina Benedita da Silva, de 50 anos, pedagoga, dançarina e artesã de bonecas, busca levar mais que um brinquedo para as crianças, mas sim autoestima, identificação e reconhecimento através do artesanato. Cresceu vendo todos os tipos de bonecas, mas nenhuma que se parecesse com ela, então surgiu a questão, onde estava sua representação.
A história de Cristina com as bonecas começou a partir da sua irmã gêmea, Cristiana, que gostava muito de bonecas e começou a fazer, e com isso ela começou a fabricar também junto de sua outra irmã Benedita e sua sobrinha Nisleine. Em 1991, através do grupo de dança, filhas e filhos de Oxum, começou a se aprofundar na arte de fabricar bonecas, pois o grupo participava de projetos e entre eles havia o incentivo do artesanato.
“Mexer com as bonecas fez com que eu estivesse em algum campo de trabalho, e o grupo incentivou muito isso, pois não se vive só de dança, ela não é suficiente para pagar despesas de casa se você não se profissionalizar. Com as bonecas, as coisas já eram diferentes”, comenta a artesã.
Algo que a motivou a aprimorar o seu trabalho foi porque em Cuiabá era e ainda é muito difícil encontrar as bonecas. E com o objetivo de levar autoestima para as meninas negras, além de incentivar outras pessoas a aprenderem e terem o seu sustento, com uma forma de empoderamento, Cristina mantém seus trabalhos até hoje.
“Eu mesma, Cristina nunca tive uma boneca negra, e eu acho que é por isso que eu gosto tanto de fabricar elas, é uma forma de proporcionar para as novas gerações algo que eu nunca tive”, afirma Cristina.
Procurando sempre trabalhar com a inclusão e a diversidade, a artista tem como propósito começar a fabricar bonecas com alguma deficiência e também mais velhas, pois acredita que as bonecas remetem à realidade e a família. Tendo essa diversidade a criança aprende desde cedo entender e respeitar todas as diferenças.
“Eu acredito nas bonecas como uma forma de combater o racismo, e até uma forma de conhecerem mais a nossa cultura. No meu tempo e acredito que até hoje muitos pais não falam sobre a diversidade que existe, por meio das bonecas é uma forma de ensinar isso”, diz a artesã.
Usando sua criatividade, Cristina e sua irmã sempre se perguntam em como a criança gostaria da sua boneca, com isso uma variedade de roupinhas e sapatinhos também são confeccionados.
Atuando juntamente com Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso (IMUNE), seus artesanatos são expostos, além de ser o lugar onde é realizado suas oficinas de bonecas. No Bakite, do Centro Cultural da Casa das Pretas, ela viu a necessidade de ter bonecas para as crianças e assim começou as vendas no local.
“Muitas crianças vêm aqui e acabam brincando com todas as bonecas que temos aqui, até as maiores que são de enfeite, mas acredito que isso mexe muito com aquele lado da fantasia da criança, com a criatividade”, fala Cristina.
Não trabalhando somente com as bonecas de pano, a artesã também produz algumas com materiais recicláveis. Tem bonecas que são feitas de tubos de linhas que acabou, rolo de papel higiênico e até cone de rua. “Tem uma boneca feita com cone de rua, e ela faz muito sucesso com as crianças que vêm aqui, porque é maior, quase do tamanho da criança e isso chama muito a atenção delas. Sempre faço bonecas para decoração e para as crianças brincarem, mas todas viram sucesso entre elas”, comenta a artista.
Em Cuiabá e na baixada cuiabana, além de Cristina, existem outros artesãos que também trabalham com as bonecas, como é o caso do senhor Geraldo, que trabalha como artesão há mais de 15 anos.
Geraldo Silva Lemos, de 67 anos, largou seu emprego para começar a fabricar bonecas de pano em parceria com sua esposa Ourides Borges Lemos, de 65 anos. Os dois comercializam em Chapada dos Guimarães, e em eventos culturais e festas, como a Feira Internacional de Turismo do Pantanal.
Sempre buscando o melhor para suas bonecas, ele dedica-se em cada detalhe e busca trazer diversidade também, pois assim muitas crianças e até adultos podem se identificar. Além das bonecas para brincar, ele também trabalha com chaveiros, ponteiras de lápis e pelúcias.
“As bonecas tem uma aceitação muito boa pelo público, a procura por elas é muito grande. Poucas pessoas produzem bonecas negras, ela é uma boneca difícil de fazer, ela é muito trabalhosa, existe um cuidado especial”, comenta o artesão.
As bonecas pretas são muito mais do que representatividade, valorização cultural e empoderamento, são também história. Com isso, Deroní Mendes, de 46 anos, e sua filha Sofia Leite, de 10 anos, têm uma relação muito especial com as bonecas. Desde cedo a mãe estimula a filha com as bonecas, pois acredita nelas como representação e encenação da vida real. Considera importante a filha começar a entender o que acontece à sua volta no mundo real, e ver não só a família dela representada, mas também ver pessoas negras em outros espaços e lugares.
“No início visivelmente ela preferia bonecas brancas e loiras. Quando entendeu que as bonecas reproduziam a família dela começou a se identificar. Tem uma bebê negra que dei a ela quando tinha 1 ano e até hoje ela ainda brinca com ela”, comenta Deroní.
A pequena Sofia entendendo seu lugar de protagonismo e demonstrando muito amor por suas bonecas, acredita que elas têm grande influência em como enxerga a sociedade hoje e suas diferenças.
“Eu sinto paixão por elas. Por saber que elas são negras igual a mim e que não existe só bonecas brancas. Elas me mostram uma grande diversidade. E que o mundo não é feito só de pessoas brancas. E que as pessoas negras podem ser o que elas quiserem na família, no trabalho, na escola e em qualquer lugar”, fala Sofia.
(Por Karine Arruda Duarte, do factoriomt)