ARTIGO: “E VIVA AS INTERFACES DO MATOGROSSO”

Gicelma da Fonseca CHACAROSQUI TORCHI1

E cego é o coração que trai

Aquela voz primeira que de dentro sai

E às vezes me deixa assim a

Revelar que eu vim da fronteira onde

O Brasil foi Paraguai

(Paulo Simões/Almir Sater, Sonhos Guaranis)

Neste dia 11 de outubro comemoramos 42 anos de divisão dos Estados, ou seja Mato Grosso ficou sendo dois e nós ficamos sendo Mato Grosso do Sul. E a partir de 1977 precisamos nós, que nascemos antes da divisão, que a aprender a ser sul-mato-grossenses. Sim porque as identidades só adquirem sentidos por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais elas são representados ( Wodwoord 2012).

Hoje, fazendo pós-doutoramento em Cuiabá e andando pelas ruas dessa cidade linda fico me questionando o que temos de igual e o que temos de diferente, afinal as “identidades são marcadas pela diferença”, ou seja, é sustentada pela supressão, se você é matogrossense, você não é sul-mato-grossense, e vice e versa. Mas é tudo tão similar, a gente tem Pantanal Sul , o Mato Grosso tem Pantanal Norte, a gente tem Bonito, Mato Grosso tem Nobres, que também é bonito,a gente em Aquidauna, Mato Grosso tem a Chapada que é fantástica.

O Mato Grosso do Sul tem como limites Goiás ao nordeste, Minas Gerais ao leste, Mato Grosso ao norte, Paraná ao sul, São Paulo ao sudeste, Paraguai ao oeste e sul e a Bolívia ao noroeste. O Mato Grosso tem como limites os estados do Amazonas, Pará ao norte; o Tocantins, Goiás ao leste; Mato Grosso do Sul ao sul ; Rondônia e a Bolívia ao oeste. Somos tão mestiços quanto. O desenvolvimento chegou pra nós na mesma época, na década de 40. A guerra da tríplice aliança foi uma só para os dois Mato Grosso, as dificuldades com a corrupção são proporcionais com governos distintos. O povo sofre da mesma forma.

O Mato Grosso do Sul possui 724 quilômetros de fronteira seca com o Paraguai e com a Bolívia, o que certamente facilita o intercâmbio de pessoas, ideias e afazeres entre os povos. Ao todo são 44 municípios sul-mato-grossenses que integram a chamada faixa de fronteira. Uma das coisas que nos diferencia muito do Mato grosso é que tomamaos bem mais Tereré. E é essa bebeida que que caracteriza pessoas, um determinado grupo, e um espaço, ou seja uma semiosfera cultural específica. Uma bebida que, juntamente com a erva-mate, atravessou e deixou marcas na história (econômica, política, social) do antigo Sul de Mato Grosso, atual Mato Grosso do Sul. Num texto cultural os traços da cor local e as circunstâncias históricas, geográficas e sociais são inevitáveis, pois “o escritor está sempre rondando suas origens; às vezes, sem se dar conta, são sempre essas origens que o seguem de perto, como uma sombra, ou mesmo de longe, como um sonho ou um pesadelo” (HATOUM, 1989, p.11)2

O Hino, que também compõem nossa identidade. Bem o hino do Mato Grosso do Sul é outro o do Mato Grosso é o mesmo, e quando ouço me sinto representada por alguns versos, dos dois hinos. Eis um trecho do hino do Mato Grosso, que diz: “Sobre tí, bela terra natal!” pois, “Dos teus bravos a glória se expande/ De Dourados até Corumbá”. Assim como me sinto representada e acho que o hino do MS é uma reprodução do que nós matogrossenses, tanto do norte, quanto do sul, de forma geral temos em comum e que estamos precisando preservar: Tuas matas e teus campos, /O esplendor do pantanal, /E teus rios são tão ricos /Que não há igual.

Outro aspecto que caracteriza as identidades matogrossenses são nossas maneiras de falar. Temos maneiras peculiares de falar, temos culturas similares e disjuntivas. Temos lendas que nos unem e comidas, cheiros e cores que nos diferenciam. Temos sotaques impares e um jeito matuto único de ser. Somos um povo alegre, festeiro, crente, solicito, abrasador como o clima tropical super-úmido de monção, com elevada temperatura que aqui prevalece. Somos do planalto central, somos do cerrado, comemos fruta no pé, tomamos banho no rio, bebemos cachaça com guariroba, pois aqui o sorriso é largo, a conversa é longa a risada é frouxa e a desconfiança é grande… No sul, falamos com sotaques distintos, na fronteira com São Paulo temos um r arrastado Porrrta, torrrta, dorrta, torrta. Na fronteira com o Paraguai, as misturas são tantas que não dá para descrever a não ser por um jopará ou pelo portunhol selvagem. Em Corumbá, ou na fronteira com a Bolívia o R e S pós vocálico tem som de Z. Por sua vez, no norte, o cuibanano também tem seu jeitinho peculiar, único de falar, com seus fonemas, vocabulários e expressões, que se distingue dos falares do resto do país e passou a ser protegido pelo poder público no dia 22 de abril de 2013, com direito a publicação no Diário Oficial do Estado para evitar o risco de desaparecimento. Temos diferenças, primamos pela “construção da identidade tanto simbólica quanto social”, desta forma não podemos negar que nossa Genesis Matogrossense encerra sonhos guaranis, terenas, kadiuéus, ofaíes, guatós bororós, xavantes, entre tantos outros…

Ou seja, somos o constructo de duas interfaces, dois Mato Grosso, inscritos na paisagem pantaneira, rural – em contraste (rápido e fugaz) com a paisagem citadina (interiorana e/ou metropolitana) –, e fronteiriça constituinte do universo geográfico do extremo oeste e geodésico do Brasil. Ou, então, no enfeixamento dessas duas faces, enquanto interfaces, como na Leminiscata 3, cujo destaque é para o fato desta só ter um lado: podemos ir de um ponto de um ‘lado’ da faixa a qualquer ponto do ‘outro’ lado, através de um caminho contínuo sem nunca perfurar a superfície. Então a faixa de moebius ou Leminiscata não tem um lado de ‘dentro’ nem de ‘fora’, somente um em que o fora é ao mesmo tempo o dentro, num processo ad infinitum representado pelo desenho da leminiscata, induzindo a representatividade de bifurcação, de enfeixamentos, de fronteiras, enquanto caminhos, interfaces e entrechos possíveis, esses são os nossos Mato Grosso, do Norte e do Sul. E Viva , mil vezes viva …

1 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Professora da Faculdade de Comunicação Artes e Letras (FACALE/ UFGD). Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras-UFGD . Estágio Pós Doutoral na UFMT, no Programa de Culturas Contemporâneas/ ECCO. E-mail: gicelmatorchi@ufgd.edu.br

2 HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 3.N.E.: Lemniscato em português, ou leminiscata em latim, é o nome do símbolo do infinito, o conhecido “oito deitado”, ou um “laço simples”. Esta palavra tem origem do latim e significa “Laços Simétricos”. Cassini é o sobrenome do astrônomo francês Jacques Cassini (1677-1756), que elaborou a fórmula que resulta no símbolo infinito que tem o conceito de infinito

REFERÊNCIAS

Woodward, Kathryn “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual”. In: Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. SILVA, Tomás Tadeu da. São Paulo: Vozes, 2012.

HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2006

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