Chamado à Fé, Adoração e Missão: A solenidade de Corpus Christi e o milagre eucarístico de Lanciano
A Solenidade de Corpus Christi, celebrada pela Igreja Católica na quinta-feira após o Domingo da Santíssima Trindade (ou, em muitos lugares, transferida para o domingo seguinte), é uma das festas mais significativas do calendário litúrgico. Instituída no século XIII, essa solenidade honra a presença real, substancial e permanente de Jesus Cristo na Eucaristia, o sacramento central da nossa fé, que o Concílio Vaticano II descreveu como a “fonte e o cume” de toda a vida cristã (Lumen Gentium, n. 11). Em um mundo marcado pela indiferença religiosa, pelo individualismo e por tantas formas de sofrimento, Corpus Christi nos convida a renovar nossa fé no mistério eucarístico, a aprofundar nossa adoração e a viver a missão de sermos testemunhas do amor de Cristo. Inspirados por eventos extraordinários como o milagre eucarístico de Lanciano na Itália, por volta do ano 750 d.C., somos chamados a acolher esse dom inestimável com reverência e a levá-lo ao mundo por meio de nossa vida transformada e serviço generoso.
A Solenidade de Corpus Christi: Uma Celebração de Fé, Adoração e Testemunho Público
A origem de Corpus Christi remonta a um contexto de florescimento teológico e devoção eucarística na Idade Média. Foi instituída em 1264 pelo Papa Urbano IV, impulsionado por dois fatores principais: a devoção fervorosa de Santa Juliana de Liège, que teve visões sobre a necessidade de uma festa dedicada exclusivamente ao Santíssimo Sacramento, e o milagre eucarístico de Bolsena (Itália, 1263), onde uma hóstia consagrada sangrou nas mãos de um sacerdote que duvidava da presença real. A bula papal Transiturus de hoc mundo oficializou a festa para toda a Igreja Latina, estabelecendo-a como um dia para celebrar a doutrina da presença real e substancial de Cristo – Corpo, Sangue, Alma e Divindade – sob as espécies do pão e do vinho, transformadas pela transubstanciação durante a consagração na Missa. Diferentemente de outras celebrações eucarísticas, como a Quinta-feira Santa, que foca na instituição da Eucaristia no contexto da Paixão e da Última Ceia, Corpus Christi é uma festa de júbilo, adoração e ação de graças, centrada exclusivamente no Santíssimo Sacramento presente no altar e no sacrário.
Um dos momentos mais marcantes e visíveis dessa solenidade é a procissão pública com o Santíssimo Sacramento, frequentemente levado em um ostensório solene pelas ruas das cidades e vilarejos. Esse ato de fé coletiva e pública proclama ao mundo que Jesus está verdadeiramente presente entre nós, não de forma simbólica ou figurativa, mas real e substancialmente. É um testemunho poderoso de que o Pão da Vida, descido do céu, não está confinado às paredes das igrejas, mas caminha conosco, abençoando nossas comunidades, nossas famílias, nossos lares e nossos desafios diários. Em muitos lugares, as ruas são artisticamente adornadas com tapetes coloridos feitos de serragem, flores, areia e outros materiais, criando um caminho digno para a passagem do Senhor. Esses tapetes, muitas vezes verdadeiras obras de arte comunitárias, simbolizam a reverência, o amor e a acolhida com que o povo fiel recebe o Rei dos reis, estendendo um “tapete vermelho” para Ele passar. A procissão e a festa externa de Corpus Christi nos lembram que a Eucaristia não é apenas um momento de comunhão pessoal e íntima, mas um chamado à missão: sermos portadores da presença de Cristo no mundo, irradiando Seu amor e Sua verdade por onde passamos.
O Milagre Eucarístico de Lanciano: Um Sinal Extraordinário da Presença Real
Para fortalecer nossa fé nesse mistério sublime e por vezes difícil de apreender plenamente, Deus, em Sua infinita bondade e misericórdia, por vezes permite sinais extraordinários, conhecidos como milagres eucarísticos. Esses eventos, reconhecidos pela Igreja após criteriosa investigação, servem como um auxílio para a fé e um convite à conversão. Um dos mais antigos e notáveis ocorreu na cidade de Lanciano, na região de Abruzzo, Itália, por volta do século VIII. Conta a tradição que um monge da Ordem de São Basílio (monges de rito oriental que viviam na região), erudito e virtuoso, mas que passava por uma crise de fé, atormentado por dúvidas sobre a presença real de Cristo na Eucaristia, celebrava a Santa Missa com o coração dividido e hesitante. Durante a consagração, ao pronunciar as palavras de Jesus na Última Ceia – “Isto é o meu corpo… Isto é o meu sangue…” – algo milagroso e visível aconteceu diante de seus olhos e dos poucos fiéis presentes na pequena igreja: a hóstia de pão transformou-se visivelmente em um pedaço de carne humana de cor rosada, e o vinho no cálice coagulou-se em cinco glóbulos de sangue de cor avermelhada.
Esse evento extraordinário não apenas dissipou instantaneamente as dúvidas do monge, que se converteu em um ardente testemunho da verdade eucarística, mas também permanece como um sinal palpável para gerações futuras. As relíquias da carne e do sangue milagrosos foram preservadas ao longo dos séculos e hoje se encontram expostas em um relicário na Igreja de São Francisco em Lanciano, sob os cuidados dos Frades Menores Conventuais. No século XX, a Igreja permitiu que as relíquias fossem submetidas a rigorosas análises científicas. Em 1970-1971, uma equipe liderada pelo Prof. Odoardo Linoli, renomado anatomopatologista e professor de anatomia humana normal e histologia, realizou exames detalhados. Os resultados foram surpreendentes e consistentes: a carne era tecido muscular estriado de miocárdio (coração), e o sangue era sangue humano do tipo AB (o mesmo tipo encontrado no Santo Sudário de Turim). As análises também confirmaram a ausência de qualquer agente conservante e a inexplicável conservação do material orgânico por mais de mil anos, desafiando as leis naturais de decomposição. Embora a fé cristã se baseie na Palavra de Deus e não dependa de provas científicas, esse milagre, cientificamente atestado em sua materialidade, reforça a crença de que, na Eucaristia, Jesus está verdadeiramente presente, como Ele mesmo afirmou de forma inequívoca: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele” (João 6:56, NAA). Lanciano é um entre muitos milagres eucarísticos reconhecidos pela Igreja ao longo da história, todos apontando para a mesma verdade central: a presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento.
Viver a Missão Eucarística Hoje: Um Chamado Inspirado por Corpus Christi e Lanciano
A Solenidade de Corpus Christi e o milagre de Lanciano não são apenas eventos para serem recordados ou admirados; eles nos desafiam a viver a missão eucarística em nosso tempo, especialmente em um contexto de secularização crescente, crises sociais e busca por sentido. Essa missão começa, fundamentalmente, com a participação consciente, ativa e frutuosa na Santa Missa. Participar da Eucaristia é encontrar-se com o Cristo que se oferece por nós na Cruz e que se dá como alimento. Devemos nos preparar para esse encontro com um coração contrito, buscando o sacramento da Confissão para estarmos em status gratiae (estado de graça) quando possível, e receber a comunhão com profunda reverência, fé e amor, reconhecendo que acolhemos o próprio Senhor, o Rei da Glória. A participação plena envolve ouvir atentamente a Palavra, unir nossa oferta à de Cristo no altar e, ao receber a comunhão, permitir que Ele nos transforme em Seu Corpo Místico.
Além da participação na Missa, a Adoração Eucarística, seja durante a exposição solene do Santíssimo em Corpus Christi, em capelas de adoração perpétua ou em momentos de silêncio diante do sacrário, nos permite aprofundar nossa intimidade com Jesus que permanece conosco. É um tempo precioso para estar na presença real de Cristo, apresentar-Lhe nossas alegrias e tristezas, interceder pelo mundo e simplesmente amá-Lo e ser amado por Ele. A Adoração fortalece nossa fé e nos capacita a viver como discípulos missionários.
A procissão de Corpus Christi nos ensina que nossa fé não deve ser vivida apenas na esfera privada; somos chamados a testemunhar publicamente a presença de Cristo em nossas vidas. Isso significa viver com integridade, esperança, alegria e caridade em todos os ambientes – na família, no trabalho, na escola, na sociedade. Nosso modo de ser e agir deve ser um reflexo da presença de Cristo em nós, para que outros possam ver em nós a luz do Ressuscitado e serem atraídos por Ele.
A Eucaristia também nos impulsiona, de forma inseparável, ao serviço e à caridade. Assim como Jesus multiplicou os pães e peixes para alimentar a multidão faminta, demonstrando Sua compaixão e poder (Lucas 9:11b-17), Ele nos envia a partilhar o que temos e somos com os necessitados, tanto material quanto espiritualmente. Viver a missão eucarística significa ser “pão partido” para os outros, praticando as obras de misericórdia corporais e espirituais, defendendo a dignidade humana, promovendo a justiça e construindo a paz. A Eucaristia nos une em communio com Cristo e entre nós, formando-nos como Seu Corpo Místico, a Igreja, enviada ao mundo para servir.
Finalmente, somos convidados a evangelizar, compartilhando a beleza e a verdade desse mistério com quem ainda não o conhece ou dele duvida. Nossa própria vida, transformada pela Eucaristia, é o primeiro anúncio. Podemos também compartilhar a riqueza da doutrina eucarística e, quando apropriado, mencionar sinais como o milagre de Lanciano, que reafirma de maneira extraordinária a verdade da presença real de Cristo, convidando à fé e à adoração.
Que a Solenidade de Corpus Christi reacenda em nós um amor ardente pela Eucaristia e que o milagre de Lanciano fortaleça nossa fé na promessa inabalável de Jesus: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele” (João 6:56). Que, alimentados por Ele, a fonte da vida, possamos ser testemunhas vivas de Sua presença transformadora, levando o amor que brota do altar a todos os corações e a todos os cantos do mundo.
(*) MARCOS ANTONIO GRANZOTTI BILLY – Advogado Criminalista. Graduado em Direito pela UNIGRAN – Centro Universitário da Grande Dourados. Especialização em Direito Penal e Processo Penal pela Escola de Direito da Associação Sul-Mato-Grossense dos Membros do Ministério Público (EDAMP). Ex-Seminarista Diocesano do Seminário Sagrado Coração de Jesus.