Crônica de uma leitora de Fronteira – Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi

CRÔNICA DE UMA LEITORA DE FRONTEIRA
Gicelma da Fonseca Chcarosqui Torchi

Do que me lembro, sempre fui uma criança muito curiosa. Cresci em Ivinhema, uma cidadezinha aqui da região leste, do interior do Mato Grosso do Sul. Assim, mesmo antes do letramento escolar, meu letramento de mundo foi intenso, claro que do meu mundo interiorano… Vivi intensamente tudo que me rodeava, cada causo à luz do lampião era motivo para minha imaginação voar. Durante o dia, eu peregrinava pelo quintal ou pelas vizinhanças, vasculhando e inventando com meu irmão, Nina, aventuras diversas. Queríamos saber de tudo! Os buracos no quintal, hoje sei que eram de corujas buraqueiras, eram motivos de nos deixar sem dormir ou, no mínimo, de dormirmos acobertados em noites de calor intenso.

Os finais de semana eram passados no sítio onde morava meu avô paterno. Era uma festa, porque, na sexta-feira, quando o vovô vinha para a cidade vender verdura, ele nos levava com ele de carroça. A nós, eu, minhas primas Nanci e Nancineide, meu irmão Nina e meu primo Zéca… vez ou outra, ia, também, meu primo Robson. Lá no sítio, as aventuras eram das melhores. Andávamos e brincávamos por tudo. Pelo pomar, pelos pastos, e na beira do Ponta Porã, o rio que passava por lá. Andávamos a cavalo, comíamos fruta no pé, catávamos guavira, e nos divertíamos para valer. As cores, as formas, os cheiros, os sons da minha infância se fazem presentes até hoje em minha memória. Assim eu cresci, envolvida por um mundo mágico, em que a linguagem oral tinha diversos acessórios. O som do cilindro em que minha avó cilindrava o pão, o som das rodas da carroça do meu avô passando pelas folhas secas, o cheiro de eucalipto da estradinha que nos levava ao sítio, tudo se misturava sinestesicamente com o odor de assado que vinha do forno de barro, onde meu avô assava as guloseimas do almoço de domingo. As várias vozes que foram se transformando, ao longo dos anos, agregadas a outras que começavam a fazer parte de minha vida de leitora não só da vida , mas também das letras.

Meu letramento se deu e, com ele, a vontade imensa de desvendar as palavras da coleção de gibis do Gasparzinho que meu pai me deu, ainda antes de ser alfabetizada. Eles ficavam pendurados numa sacola da coca-cola, quando não estavam sendo vasculhados, várias vezes ao dia. Passei o primário lendo gibis, ou relendo gibis, contos de fadas e ouvindo histórias fantásticas, inventadas e “reais”. Claro que muitas foram as brincadeiras: de roda, de passar anel, de ele ou ela (cai no poço), de cinco Marias, de elástico, de inventar personagens…

Na adolescência, dividia meu tempo de leitura entre os romances de consumo: Júlias, Sabrinas, os livros de auto-ajuda, os clássicos do romantismo brasileiro e as reflexões de passagens bíblicas que meu avô me impunha. Isto associado à leitura móvel da televisão, das telenovelas e dos filmes de sessão da tarde. Aos finais de semana, o sítio já não nos agradava mais, o vovô, devido à doença que deixou minha avó acamada, tinha se mudado para a cidade. Assim, meu pai nos levava (eu e o Nina) para ver Mazzaropi no cinema local. As festas eram uma constante: Quermesses. Que saudade eu tenho das quermesses das Glebas, dos bingos que divertiam minha mãe e dos bailes onde aprendi a bailar com meu pai! O velho Clube, ACRI, Associação Cultural e Recreativa Ivinhemense era pura vida nos bailes de Carnaval. Oh, quanto riso, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão…
Na quinta série, meu professor de português impôs um diário de leitura do mundo. Tínhamos que relatar nosso dia-a-dia. Para enganar o professor, e porque eu achava aquilo muito chato, eu usava minha criatividade e inventava mil e uma coisas para escrever, colar e pintar no diário. Assim, comecei a ter prazer não só em ler, mas em escrever também. Vários foram os cadernos de lembranças de acrósticos e de poemas e dizeres bonitos. Com o romantismo aflorado pela idade, passei minha puberdade e juventude rascunhando versos e sonhando com o príncipe encantado…

Quando fui fazer Magistério, eu assumi uma sala de aula de Pré-escolar como assistente e outra como titular. Minhas leituras se aprofundaram, tanto as técnicas quanto as lúdicas. Tinha que me preparar para ensinar e deixar meus alunos sempre motivados. Eram realidades econômicas distintas. Crianças de classe média, em um período, e crianças da periferia, em outro período. Dediquei-me, li, trabalhei e estudei muito. Era tamanha minha vontade, então, de poder fazer Faculdade, de sair de Ivinhema, de ganhar o mundo que eu lia nos livros, que eu via na TV e assistia no cinema. Mal sabia que Ivinhema era meu paraíso, que a beira do Ponta Porã era meu refúgio, que meu mundo é minha fortaleza, que minha casa é onde está meu coração…

Proust me mostrou isto e eu vivo como todos os leitores adultos, em busca de um tempo perdido. Fiz Letras na UFMS, mesma Universidade onde me formei Mestra em Literatura. Hoje, doutora pela PUC de São Paulo, e com estágio pós-doutoral pelo ECCO/UFMT, sei que minhas leituras das letras só se fizeram mais intensas pelas minhas leituras do mundo. O diálogo autor/ texto/ leitor, em minha vida de leitora, sempre foi mediado pelo meu mundo familiar e social. As diversas vezes em que eu perdia meu intervalo, fazendo reflexões com meus professores, as diversas vezes em que meu avô me impunha uma leitura e as discutia comigo, as inúmeras vezes que me ofereciam um romance da Literatura Brasileira no lugar de uma Sabrina me fizeram refletir não só o que o texto me dizia, mas como ele me dizia.

Hoje, só tenho a agradecer às pessoas que contribuíram com meu letramento, mas, acima de tudo, com meu letramento literário. Sim, pois sei que meu letramento só se fez da forma que se fez, porque eu, além de me alfabetizar, me apropriei e exigi todas as práticas sociais que advêm com o letramento. Hoje, eu entendo que minha prática de catequista, grêmio estudantil, teatro universitário, partido político, movimento estudantil universitário, sindicato e a experiencia profissional crítica só se fizeram possíveis graças à cidadã leitora, que se formou leitora na beira do Piravevê, na barranca do Ivinhema, vendo as águas turvas do catequista Ponta Porãzinho… Aqui, onde se come chipa paraguaia, se toma tereré e, se não tivesse acontecido a guerra, seria um outro país… No centro geodésico do Brasil, na fronteira com o Paraguai…

Gicelma da Fonseca Chacarosqui Torchi é Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-São Paulo e Pós Doutorado em Culturas Contemporâneas pela UFMT. Professora do ensino superior na UFGD, na região de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Possui várias publicações, dentre elas livros e crônicas em jornais da região onde vive, dos quais é colaboradora e colunista. (gicelmatorchi@ufgd.edu.br)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *