Glória Maria foi a preta que o Brasil insiste em tentar matar na origem
Por Ricardo Kertzman*
O Brasil mata seus pretos como moscas. O último país do mundo a abolir a odiosa e inaceitável escravidão permanece até hoje preso ao passado escravocrata. E não, não estou aqui a repetir chavões ideológicos, mas a escancarar de forma nua e crua, apresentando dados e fatos, nossa triste realidade.
Com 54% da população nacional, os pretos são as maiores vítimas de intervenções policiais violentas, representando 84% das mortes, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho do ano passado. Sim, meus caros, estamos falando de quase nove em cada dez mortes causadas por policiais.
Segundo o mesmo Anuário, dentre as mortes intencionais (homicídio doloso, latrocínio e lesão corporal seguida de morte), 80%, ou seja, oito em cada dez são de pessoas pretas. Mas não acabou: 68% dos policiais vítimas de mortes violentas são pretos, 62% das vítimas de feminicídio são pretas e 68% da população carcerária.
Desiguldade – Outra chaga exposta e até então incurável do chamado racismo estrutural brasileiro é a desigualdade social. Em um país tão pobre e carente de tudo, a pobreza e a extrema pobreza são ainda mais duras e cruéis com os pretos, principalmente com as pretas, e tanto pior se forem mães solteiras ou chefes de família.
De acordo com o Estudo de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, realizado e divulgado em 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2021, considerando uma renda de cerca de 5 dólares por dia, a taxa de pobreza entre os brancos atingiu 19%. Já entre os pretos, 35%.
Se considerarmos o quesito “extrema pobreza” (1,9 dólar por dia), entre os brancos, a taxa ficou em 5%, contra quase o dobro, 9%, entre os pretos. A taxa de desemprego segue o mesmo padrão: 16% para os pretos e 11% para os brancos. Outro dado cruel: durante a pandemia, 7% dos brancos não tiveram aulas presenciais, e negros, o dobro, 14%.
Glória Maria – Recentemente, escrevi uma coluna por ocasião da morte do Pelé. Nessas horas, um branco como eu percebe a grandeza de ser famoso, rico e admirado, sendo preto no Brasil. As barreiras e as dificuldades que têm de transpor são compreendidas, em plena extensão, apenas por quem é preto; é o tal do “lugar de fala”.
Jornalistas de expressão pretos, hoje, temos alguns: Maju Coutinho, Heraldo Pereira, Márcio Bonfim, Aline Midlej, Luciana Barreto, Flávia Oliveira, Edilene Lopes. Ainda que sejam raros diante o todo, ao menos não são mais, digamos, novidades. Mas estamos em 2023, em pleno século XXI. Retrocedam 50 anos e analisem o mesmo cenário.
Foi em 1971 que Glória Maria estreou na Globo. Atenção: na Globo! Naquela época, meus caros, não havia televisão a cabo nem internet. Era TV (três ou quatro emissoras) ou rádio. Em plena ditadura militar, num tempo em que matar mulher “em defesa da honra” era permitido e que pretos eram literalmente mão de obra pesada e barata.
Legado – Glória colecionou feitos incríveis em sua carreira. Entrevistas exclusivas com gente muito, mas muito importante; reportagens e matérias que causaram abalos sísmicos no mundo político, nas artes, nos espetáculos; quadros inéditos e transformadores na maneira de se fazer jornalismo, sempre com um sorriso estampado, mostrando o prazer pelo trabalho.
Essa moça abriu os caminhos do jornalismo para as mulheres e, claro, para os pretos. Inspirou suas semelhantes a sonhar alto como ela mesma sonhou. E após tanto sucesso, tantas experiências, tanta “vida”, ainda encontrou tempo, doação e amor para adotar duas lindas moças, em 2009, Laura e Maria, hoje adolescentes e órfãs.
Reza a lenda que todos devem passar pela vida e ao menos escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore. Glória disse certa vez: “minha vida é imbiografável”. Não sei se plantou uma árvore. Mas suas filhas nos lembrarão sempre da maravilhosa mulher, preta, linda, ética, elegante, íntegra e cheia de vida que entreteu e influenciou gerações.
* O autor é empresário, blogueiro e colunista de O Estado de Minas