‘Plano diabólico’: O capitão que evitou atentado com 10 mil mortes na ditadura militar
“Não, não concordo. E, enquanto eu estiver vivo, isso não acontecerá.” Estas teriam sido as frases ditas pelo capitão-paraquedista Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, conhecido como Sérgio Macaco, a seu superior, o brigadeiro João Paulo Burnier em 12 de junho de 1968. Na mesa de Burnier estava um ousado plano que deixaria pelo menos 10 mil mortos no Rio – e a culpa seria atribuída “aos comunistas”.
Conforme denunciou o capitão – e inquéritos posteriores confirmaram -, o brigadeiro queria que o esquadrão paraquedista de resgate Para-Sar organizasse uma série de atentados. Carvalho comandava esse grupo.
Burnier previa explosão de bombas em alvos específicos como lojas, agências bancárias e a sede da embaixada americana e tinha uma lista de 40 personalidades de oposição que deveriam ser sequestradas e lançadas, de avião, no meio do oceano – entre os nomes, o cardeal d. Helder Câmara, o ex-presidente Juscelino Kubitschek e o ex-governador da Guanabara Carlos Lacerda.
Por fim, o plano ainda incluía a explosão do hoje desativado Gasômetro do Rio – na época, fornecedor da gás para a cidade – e da represa de Ribeirão das Lajes. E isso seria feito na hora do rush, o que causaria a morte de, pelo menos 10 mil pessoas – algumas estimativas calculam dez vezes mais.
Mesmo com todas as investigações realizadas posteriormente, que incluíram depoimentos de 37 testemunhas entre cabos e sargentos do esquadrão de paraquedistas, Burnier sempre negou que tivesse planejado esses atentados. Pela insubordinação, Carvalho foi preso por 25 dias e respondeu a processos na FAB (Força Aérea Brasileira), no SNI (Serviço Nacional de Informações) e tanto na Justiça civil quanto na militar. Foi absolvido em todos os julgamentos.
Na época, Carvalho foi transferido para Recife e, no ano seguinte, com a promulgação do Ato Institucional nº 5, foi compulsoriamente reformado.
“Sérgio Macaco foi um herói. Um militar que teve a coragem de, durante a ditadura, denunciar um plano da extrema direita militar do Brasil de praticar atentados. Ele desarmou um plano diabólico e pagou as consequências”, diz o jornalista Lucas Figueiredo, autor do livro “Ministério do Silêncio”, onde também aborda esse caso.
O jornalista afirma que não classifica a insubordinação de Carvalho “como um ato de desobediência, porque nenhum servidor público, civil ou militar, é obrigado a praticar crimes no exercício de sua função”.
“Embora subordinado a poderes superiores, ele agiu em respeito à vida humana e a uma frágil Constituição [de 1967]. Houve um princípio ético no qual o militar optou por uma decisão correta”, avalia o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez, professor na Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da ESPM.
Modus operandi – Figueiredo acrescenta que a ideia de praticar atentados e atribuí-los a “radicais comunistas” era parte do modus operandi de parte da cúpula da ditadura militar brasileira. “Isso vai acontecer muito na década de 1970, com explosões em banca de jornal e coisas assim”, comenta.
O episódio mais famoso foi o atentado ao Riocentro, em 1981, quando um grupo do Exército planejou uma série de explosões em um centro de convenções do Rio, onde ocorria um evento em homenagem ao Dia do Trabalhador. Nesse caso, a condução desastrada da operação acabou sendo o que salvou o público de uma grave tragédia.
“A ditadura civil-militar atuava mediante uma legalidade autoritária que consistia em ‘combater’ um inimigo interno baseado na doutrina da segurança nacional”, explica o cientista político e jurista Manoel Moraes, professor na Universidade Católica de Pernambuco.
“Dessa forma, várias atividades dos órgãos de repressão política eram clandestinas. A opinião pública era manipulada pelas ‘informações’ difundidas pelo sistema de censura que consistia em criar e alimentar a ideia que os grupos que se organizaram para resistir à ditadura eram ‘terroristas’, e que seus atos eram atentados à segurança interna”, diz Manoel Moraes.
Moraes lembra que as comissões da verdade compilaram “vários relatos de manipulação de dados e informações”, revelando que havia um padrão de “manipulações graves para encobrir os crimes praticados pelos agentes públicos” durante o regime militar.
Era uma narrativa de que “o país estava crescendo economicamente, em segurança, e combatendo os ‘extremistas’, ‘comunistas’ que estavam ameaçando a propriedade, a família e os valores religiosos do país”, explica Moraes.
Ramirez lembra que episódios de violência pública são historicamente utilizados como estratégia para legitimar quem está no poder – ou desqualificar algum grupo eleito democraticamente. Ele cita o uso político feito pelos nazistas do incêndio do Reichstag, a sede do Parlamento alemão, em 1933, e até mesmo a tentativa de golpe praticada por apoiadores do já ex-presidente Jair Bolsonaro em 8 de janeiro de 2023, em Brasília.
“Governos que queiram tomar as rédeas do poder fechando a sociedade e suas liberdades buscam estardalhaços. Sempre que se cria o caos, concentra-se poder de alguma forma, já que a sociedade passa a ter apelo por um poder político mais autoritário”, analisa.
Promovido depois de morto – Carioca de Vila Isabel, Carvalho entrou para a FAB aos 18 anos. Quando se tornou herói, tinha uma sólida e reputada carreira: integrou o grupo que criou o Para-Sar, unidade de elite especializada em resgate e salvamento, e tinha um currículo com cerca de 900 saltos, 6 mil horas de voo e quatro medalhas por bravura.
No fim dos anos 80 e início dos 90, enveredou pela política e chegou a assumir, como suplente, o mandato de deputado federal pelo PDT.
Ele se recusou a pedir o benefício da Lei da Anistia, de 1979, porque acreditava que não poderia ser perdoado por um crime que não cometera. Até o fim da vida, insistia que queria ser reintegrado à FAB.
O caso subiu ao Supremo Tribunal Federal e somente em 1992 houve vitória no processo. A Justiça determinou ainda que ele fosse promovido a brigadeiro, alegando que seria a patente que ele alcançaria se tivesse permanecido na ativa. O comando da Aeronáutica, contudo, se recusou a cumprir o determinado, e repassou a situação ao presidente da República, Itamar Franco.
Vítima de câncer no estômago, Carvalho morreu em 5 de fevereiro de 1994. O decreto presidencial que lhe devolveu seus direitos foi assinado por Franco apenas seis dias depois.
(Por Edison Veiga, do UOL)