Na reserva indígena mais populosa do País, a pandemia não tem rosto, apenas números
Por Bianca Cegati Ozuna*
A casa de “seu” Tanazinho, frequentemente é ponto de referência para quem explica algum endereço na aldeia Jaguapiru. Homem de fácil comunicação, respeitado, mas também muito brincalhão, o que o tornou um exemplo para os mais jovens da região. Pai de 12 filhos e avô de 46 netos, foi capitão da aldeia em outras épocas e depois se tornou pastor de uma igreja evangélica, da qual era presidente. Ainda assim, e, mesmo aposentado, encontrava tempo para trabalhar com o conserto de carros. Com orgulho, era mecânico.
A breve biografia, que pouco – ou quase nada – foi contada pela imprensa local, é de Atanazio Cabreira, de 67 anos, morador da aldeia Jaguapiru, na Reserva Indígena Federal de Dourados, estado de Mato Grosso do Sul. Nas matérias sobre sua morte, “seu” Tanazinho, como era conhecido, foi retratado apenas pelo anônimo conjunto gênero-idade-numeral ordinal: homem, 67 anos, segunda vítima da covid-19 na Reserva. Foi necessário buscar em quatro sites locais de notícias para encontrar seu nome e qualquer outra informação não emitida em nota.
Enquanto isso, do lado mais empoeirado da cidade, a figura de Atanazio, tido como liderança de toda uma comunidade, é lembrada com carinho: “Uma referência para a vida toda, pois era trabalhador, honesto e muito querido por todos, realmente especial, sempre calmo e aberto ao diálogo. Me lembro de tantas coisas ótimas com ele, como quando eu era criança e andávamos de trator! Ele e uma criançada! Íamos buscar pasto para os animais. Era só alegria! E faz tanto tempo, eu tinha sete anos, mas nunca me esqueço”.
As recordações são de sua neta, a auxiliar em saúde bucal Edivania Cepre Cabreira, de 30 anos. Acometido pelas complicações da contaminação pelo novo coronavírus, o terena faleceu no Hospital Evangélico, em Dourados, no dia 26 de junho, após 21 dias de internação.
Se, por um lado, é prática corriqueira de grande parte da imprensa regional a cobertura de fatos apenas por dados oficiais, por outro, essa é a forma mais eficiente de se apagar a identidade de um povo. Nasceram tantos, morreram outros tantos, não sei quantos acidentes de trânsito, um sem-fim de boletins. Pasteurizadamente, é o copia-e-cola que Deus dá, de praxe nas redações do interior do Brasil, sem estrutura, com poucos repórteres e com muita gente dando ordens. É de se compreender que na pandemia, com informações pululando de releases, lives governamentais e coletivas de imprensa, não seria diferente.
Quando, então, a notícia ultrapassa a zona urbana das cidades e tem foco nas comunidades marginalizadas, bastam tabelas cheias de números e porcentagens saídas de alguma secretaria para narrar essas vidas. E, assim, mesmo que inconscientemente, o jornalismo local, o que mais facilmente cai “na boca do povo”, comete o erro histórico de não mais contar histórias, principalmente quando se trata das trajetórias de populações esquecidas pelo poder público, como é o caso dos indígenas do Sul de Mato Grosso do Sul.
Em Dourados, segunda maior cidade do Estado, e a que comporta a mais populosa reserva indígena do Brasil, a população das aldeias sobrevive sem rostos. São 18 mil pessoas literalmente à margem da sociedade douradense, se somados os moradores das aldeias que compõem a Reserva Federal – Jaguapiru e Bororó – aos que vivem na aldeia Panambizinho e nas comunidades acampadas em terras retomadas.
Desde que, há oito anos, vim para este chão que até hoje pinta meus pés com terra fina e vermelha, a vida indígena é um tema que lateja minha cabeça e que quer correr para as pontas dos dedos. Como ignorar cultura tão rica e ancestral batendo a sua porta todos os dias em busca de um prato de comida e um par de tênis velhos?
Mesmo vivendo numa bolha em que as culturas Guarani Kaiowá e Terena resistem por meio de pesquisas, ações afirmativas e políticas educacionais voltadas especificamente a essa população, basta sair do campus da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), onde sou jornalista, para sentir o preconceito e a indiferença, quase sólidos de se pegar com a mão, contra as comunidades indígenas. A ideia de que o índio não contribui para a economia e o funcionamento da sociedade é tão arraigada à cultura local, que chega a ser natural a discriminação em certos – muitos – espaços. “Cuidado ao correrem perto dos condomínios fechados muito cedo ou muito tarde. Tem muito índio andando por lá”, diz uma colega em grupo no Whatsapp. “Índio é preguiçoso. Bota para trabalhar, aí eu quero ver”, fala em modo repeat um senhor na fila do supermercado.
Tão presentes, garimpando em lixeiras e pedindo qualquer coisa em portões, e ao mesmo tempo tão distantes. “A ausência de pautas positivas sobre a comunidade indígena na imprensa local é reflexo da forma como Dourados se relaciona com a população indígena, sempre a uma distância enorme”, me diz o professor Cássio Knapp, da Faculdade Intercultural Indígena da UFGD. “Eu já escutei de algumas pessoas que nasceram aqui que elas nunca foram à Reserva Indígena, o que mostra que os indígenas sempre foram tidos como uma coisa à parte da cidade, como se não pertencessem ao cotidiano”, comenta.
É tão indissociável da cultura dessa outrora terra de ervais, que chega a ser institucional. “Nos informativos publicitários da Prefeitura, por exemplo, sempre são mostrados como se fizessem parte da história, mas aparentemente apenas da história, e não do presente”, analisa o docente.
Parte da história
Talvez em mim fale alto uma ascendência Guarani de uma bisavó que nunca conheci e que viveu em uma aldeia na fronteira com o Paraguai, para os lados de Bela Vista. Além dos cabelos muito lisos e de uma nostalgia de coisas do mato, ela pode ter me transferido a sensação de que nada está em seu devido lugar. E a imprensa, enquanto ferramenta de transformação da sociedade, precisa assumir a postura de porta-voz das realidades, independentemente de quem as protagonize.
Como ponto de partida para este texto, em um site de pesquisa, delimitei o período de 13 de março a 16 de julho de 2020, com as palavras-chave “coronavírus”, “indígena” e “Dourados”. Selecionei apenas os resultados que se enquadraram como notícias e o que constatei, sem espanto, foi que os veículos de comunicação locais, em sua esmagadora maioria, não aprofundam suas pautas quando o tema é o impacto da pandemia nas comunidades indígenas da região. Pude contar nos dedos de uma das mãos matérias minimamente elaboradas e que fugiram dos números oficiais para relatar algum aspecto desse universo.
Curiosamente, grandes e bem enredadas reportagens sobre os moradores da Reserva e suas dificuldades no combate à covid-19 foram pauta em dezenas de portais nacionais, tanto alternativos como comerciais. Se isso não comprova a influência do racismo naturalizado no trabalho da imprensa regional, uma “voltinha” na terra de ninguém escriturada pelas redes sociais é suficiente para se ver escancarado todo tipo de discurso de ódio contra os povos originários. Pouco antes de decidir pelo tema deste texto, quando ainda tinha dúvidas sobre sua possível repercussão, um desses episódios causou grande alarde na minha redoma social, como se fosse uma placa piscando: senta e escreve.
Indignada com normativa municipal que proíbe temporariamente a abertura de alguns tipos de estabelecimentos comerciais, por conta da pandemia, a proprietária de uma conhecida academia de ginástica da cidade, em um gritante capslock, esbravejou sobre seu nicho de mercado estar prejudicado, enquanto “ESSAS PESSOAS PODEM ANDAR DE BANDO SEM MÁSCARA E SE NÃO ME ENGANO A ALDEIA ESTAVA CHEIA DE COVID!!! ACORDAAAA DOURADOS!!!!”.
Por “essas pessoas”, leia-se: uma mulher e duas crianças indígenas, em uma bicicleta, com seus rostos expostos em publicação na conta comercial da academia. “Tenho para mim que as situações relacionadas à covid-19 e à pandemia só intensificam o que já acontece rotineiramente”, lamenta o professor Cássio. A propósito, das dezenas de veículos de comunicação da macrorregião da Grande Dourados, apenas três consideraram desenvolver pauta sobre o ocorrido.
Ciclo difícil de quebrar
Enquanto o empresariado fala do que desconhece, já que nunca colocou seu SUV nas estradas de terra batida da Reserva, a comunidade indígena se articula como pode para barrar o vírus. E, aqui, sim, exploro os números para demonstrar. De acordo com dados do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) de Dourados, até as 20h30 do dia 16 de julho de 2020, 205 indígenas tiveram confirmação de infecção pelo novo coronavírus na região, sendo que três foram a óbito em função da doença: dois da etnia Guarani Kaiowá e um da Terena. Enquanto o índice tem, há dias, se mantido estável entre essa população, no perímetro urbano os casos não param de aumentar e chegam a 3.488, com 45 mortes já registradas, conforme boletim da Prefeitura de Dourados.
A enfermeira Indianara Guarani Kaiowá conhece na pele as realidades da Reserva Indígena Federal de Dourados e fala sobre as medidas que vêm sendo tomadas para mitigar os riscos da pandemia. Nascida e criada no local, ela, aos 29 anos, atua no DSEI e enfrenta um dos maiores desafios de sua carreira, já bastante sobrecarregada pelas dificuldades de se atender um imenso contingente populacional que vive espremido em um pequeno território – somente na Reserva, são aproximadamente 15,5 mil pessoas morando em 3.475 hectares com mínima infraestrutura de serviços públicos.
Ela me conta que, mesmo antes de o vírus chegar às aldeias de Dourados, as equipes de saúde, em parceria com a comunidade, já vinham trabalhando na disseminação de informações sobre a prevenção da doença, tarefa complexa em uma região onde faltam itens básicos como água potável, essencial para a higienização das mãos. “Desde o início, buscamos orientar para que a população não circule, para que fique nas residências. Mas como trabalhar isso se falta água em várias regiões e as pessoas têm que se deslocar para buscar?“, indaga.
O trânsito entre a cidade e a Reserva sempre foi intenso, em parte pelos moradores que trabalham na área urbana e, também, por conta das famílias que saem em busca de alimentos e outros itens fora das aldeias. Como são muitas entradas, as equipes de saúde não conseguem instalar barreiras sanitárias em todos os pontos e contam com o apoio de voluntários para essa tarefa, pois não existe envolvimento direto dos órgãos governamentais. Sem o fornecimento adequado de insumos pelo poder público, as ações funcionam por meio de doações, inclusive, de equipamentos de proteção individual (EPIs).
“O grupo tem executado, por conta própria, ações de orientação, entrega de máscaras e alimentos e controle do trânsito de pessoas, além de tentar minimizar o fluxo da aldeia para a cidade e vice-versa. Mas a quantidade de moradores propicia muitas vulnerabilidades, já que existem outros determinantes sociais como a violência, a falta de políticas públicas de educação e o baixo empoderamento da saúde indígena”, me explica a profissional de Enfermagem.
Quando o primeiro caso em indígena foi identificado, foi como se uma explosão nuclear tivesse ocorrido. Em 13 de maio, uma trabalhadora de um frigorífico local, de 35 anos, moradora da Reserva, testou positivo para a covid-19. A imprensa entrou em polvorosa e a opinião pública se desmoronou em críticas aos costumes da população indígena. Parecia que Dourados havia começado a perecer diante de uma ameaça não anunciada, sendo que entre os caraí – não índios, no idioma Guarani – já havia 23 infectados.
“Aqui, a pandemia chegou carregada de racismo e preconceito. E isso existe, sempre existiu, da cidade para com a aldeia. A mídia, às vezes indiretamente, contribui para esse cenário, pois a maioria das publicações sobre a aldeia são negativas. Não vemos a imprensa divulgando as ações da comunidade, as boas práticas locais, nossas tradições, nossos costumes, nosso modo de ver a vida. A população, então, cria e propaga os preconceitos. É um ciclo muito difícil de quebrar, por mais que alguns veículos tenham evoluído em sua percepção. É preciso ainda melhorar muito para que se reduza o ódio racial contra a população indígena”, aponta Indianara.
A mim, me resta, enquanto jornalista e moradora de Dourados, duplamente afirmar que é imprescindível que os profissionais de comunicação da cidade ocupem seu espaço de fala enquanto especialistas em sua área e conduzam a informação a partir de sua função social. Conheço os efeitos que a rotina e a correria do factual impõem sobre o jornalismo utópico e revolucionário da época da faculdade. A grande reportagem não se tornou a realidade de todos e o instinto de sobrevivência alarma a cada vez que uma redação é enxugada.
Mesmo assim, é necessário desenvolver pautas mais empáticas, apuradas, exauridas, historiadas, a ponto de mudar a relação que se tem com o tema e transferir esse novo entendimento para o texto. Pois, no fim das contas, nada mais é o jornalista que um intérprete da existência.
* A autora é jornalista formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e especialista em Comunicação Audiovisual pela PUC-PR. Atualmente integra a equipe da Assessoria de Comunicação Social da UFGD, em Dourados/MS. (Artigo publicado no SOS Imprensa, da UnB))