O IMPACTO DO CELULAR EM ALDEIAS INDÍGENAS
Índios de iPhone e conectados à internet? Sim. E eles estão fazendo uso de novas tecnologias para promover e preservar sua língua e cultura. Mas, se a janela aberta pelos smartphones e pela internet serve para proteger manifestações culturais, o contato intenso com o mundo dos “brancos” está promovendo mudanças profundas no cotidiano. Em vez de brincar nas matas, aprendendo a pescar e usar o arco e flecha, em algumas aldeias as crianças agora ficam isoladas em seus cantos, com os olhos grudados nas telas dos jogos eletrônicos.
“Cresci sem internet, a gente brincava com bola, ia para o mato caçar e pescar. Hoje, nossas crianças estão como os filhos dos brancos”, criticou Ashaua Kuikúro, do povo cuicuro, no Parque Indígena do Xingu. “Em vez de brincar, elas ficam no celular jogando.”
Na aldeia Piyulaga, do povo uaurá, também no Xingu, a solução adotada para evitar que os jovens se distanciem da cultura local foi radical.
“Quando tem algum ritual tradicional, a gente desliga a internet para que todos participem da festa”, contou Pyrathá Waurá. “Todos os grandes acontecimentos na aldeia são importantes para nós, porque nosso aprendizado é pela oralidade e pela prática.”
Outra forma de adaptar as novas tecnologias à cultura local foi dar nomes a elas. Em uaurá, língua da família aruaque, internet virou enunakuwa — céu aberto para flutuar — e celular yuntagapi — aquele que transmite informações. Professor na escola de Piyulaga, Pyrathá é um dos responsáveis por passar o conhecimento tradicional, sobretudo a língua, para as novas gerações. E a enunakuwa e o yuntagapi são ferramentas poderosas nesse processo.
Ao lado de pesquisadores do Museu do Índio, Pyrathá participa de um projeto para a construção de um dicionário eletrônico uaurá. No momento, já existem cerca de 200 verbetes catalogados, com a palavra escrita, exemplos de uso e a tradução para o português. Alguns possuem áudios, vídeos ou imagens.
“Essas ferramentas mudaram completamente o modo de fazer pesquisa. Agora, os estudos são feitos com, e não sobre, os indígenas”, disse Bruna Franchetto, pesquisadora do Museu do Índio. “A contribuição desses projetos para a linguística e para a antropologia no Brasil é inestimável. E o envolvimento dos indígenas eleva sua autoestima cultural e linguística de maneira drástica.”
Com mais de uma década de experiência na documentação da cultura ianomâmi, o linguista Helder Perri Ferreira, do Instituto Socioambiental, destacou que esses dicionários são importantes não apenas para o registro escrito, em nuvem, das línguas indígenas, mas para a valorização, entre os próprios índios, de suas tradições.
“O contato é sempre traumático, bagunça muito o cotidiano das comunidades e, muitas vezes, ocupa o espaço de algumas práticas tradicionais”, analisou Ferreira. “As novas tecnologias cumprem papel estratégico no fortalecimento e na promoção não só da língua, mas também das manifestações culturais. Assim como nós, brancos, os indígenas também têm um fascínio pelos eletrônicos. Nós não largamos o celular, os indígenas não são diferentes. Mas nós conseguimos consumir produtos culturais em nossa língua. Eles, não.”
No projeto que Ferreira desenvolve com os ianomâmis, os indígenas recebem smartphones para a produção de conteúdo sobre eles, para eles. Como a região não possui cobertura de internet, o Instituto Socioambiental pretende instalar uma rede local, como uma intranet, para servir algumas aldeias.
A ideia, contou o linguista, é treinar nos próximos três anos turmas de comunicadores ianomâmis, como jornalistas, capazes de usar os celulares para a produção de reportagens e documentários em ianomâmi, para consumo dos próprios indígenas.
“Não faz sentido só a gente se aproveitar desse conhecimento para nossas pesquisas”, afirmou Ferreira. “Com um smartphone, eles têm uma boa câmera e um bom gravador para fazer os registros. A partir do ponto de vista deles.”
O projeto também envolve a elaboração de dicionários entre as diferentes variações da língua e o português. Só no Brasil existem mais de 200 aldeias ianomâmis, com cerca de 25 mil indígenas que falam seis línguas diferentes.
“É como o espanhol e o português, são línguas parecidas, permitem a comunicação, mas não são iguais”, afirmou Ferreira.
No processo de documentação, os índios mais jovens, em treinamento, são incentivados a entrevistar os mais velhos, para que a história oral seja registrada. Dessa forma, tradições que seriam perdidas se eternizam em bits e são assimiladas pelas novas gerações.
“O contato já aconteceu. O que nós pretendemos é oferecer condições para que eles não sejam vítimas de sua história, mas sujeitos ativos nesse processo. Que eles possam escolher as coisas que vão entrar ou não, como essa entrada vai acontecer e qual vai ser o peso disso dentro de suas comunidades”, disse Ferreira.
De acordo com o Atlas das Línguas em Perigo da Unesco, existem no Brasil 190 línguas em risco de extinção ou já extintas, sendo 39 delas com menos de 20 falantes. Chang Whan, pesquisadora do Museu do Índio, explicou que existem situações diferentes entre os cerca de 280 povos existentes no país, mas que todas as línguas indígenas estão ameaçadas.
“Os uraquenas são numerosos, com quase 3 mil indígenas, mas só 16 falam a língua nativa e eles já são idosos. Então, a língua está num nível crítico de extinção. Já os corubos são cerca de 80 indígenas, mas todos falam a língua”, exemplificou. “O povo que perde a língua perde sua identidade, sua origem, sem falar de todo o arcabouço de conhecimento sobre o local onde vivem. Se a língua for embora, eles se diluem num genérico de caboclos.”
(Época)